sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Helio Gurovitz: Bolsonaro, a imprensa e o ardil do populismo

- Revista Época

Bolsonaro, a imprensa e o ardil do populismo Jair Bolsonaro ainda é uma esfinge. A campanha eleitoral, ditada pela polarização e pelo discurso raivoso, não permitiu que suas propostas fossem analisadas em detalhes, nem submetidas a debates com visões antagônicas. Seu programa de governo começa a ganhar forma agora, ditado pelas circunstâncias das articulações políticas. Sua personalidade será decisiva para determinar o êxito do governo. 

Nas primeiras declarações e movimentos depois da vitória, ele procurou se mostrar sereno e conciliador, em contraste com a rebeldia, a agressividade e as ofensas que marcaram a carreira de deputado e a campanha. Tentar vislumbrar a realidade que existe atrás do “mito” Bolsonaro continua a ser um desafio, diante da falta de conhecimento de qualidade sobre sua ascensão. Quem estiver interessado em conhecer em profundidade o novo presidente terá enorme dificuldade.

Com exceção de um livro publicado pelo próprio filho Flávio no ano 2000, a única biografia disponível de Bolsonaro saiu neste ano. Publicada pelo jornalista Clóvis Saint-Clair diante da oportunidade oferecida pela corrida eleitoral, tem os defeitos inerentes a um livro produzido às pressas. 

Sem acesso a Bolsonaro ou testemunhos de sua trajetória, o texto se resume a reunir o material já publicado sobre as principais polêmicas da carreira dele até o início da campanha (sem, portanto, as últimas decisões nos tribunais, nem o atentado de que foi vítima). O estilo é pobre, apoiado em chavões (como “nem tudo são flores”), metáforas gastas (Cavalão, apelido de Bolsonaro no Exército, dá azo a imagens hípico-equinas recorrentes, como “coice”, “páreo” ou “pule de dez”) e falhas de revisão (como “extratos (sic) sociais”). Mas o livro tem o mérito de reproduzir com fidelidade as declarações de Bolsonaro, sem omitir o contexto.

 Está tudo lá na íntegra. Entrevistas e pronunciamentos com loas à ditadura e à tortura, ofensas a gays, mulheres e minorias, até os embates com parlamentares, como Maria do Rosário ou Jean Willys, que lhe renderam a censura dos pares no Congresso e processos na Justiça. Saint-Clair obviamente se opõe a Bolsonaro. Sua posição política fica clara quando chama Dilma Rousseff de “presidenta”. Mas ele não deixa que isso interfira na forma como lida com a informação. Seu trabalho jornalístico ao reproduzir as polêmicas é honesto e preciso. Só por isso, seu livro tem valor como referência.

O maior valor, contudo, está em ilustrar o principal desafio diante dos jornalistas ao cobrir o novo governo. Saint-Clair mostra que Bolsonaro é, em suas próprias palavras, “mais berro que argumento”. O presidente eleito segue a cartilha de populistas como Donald Trump, Hugo Chávez ou o próprio Luiz Inácio Lula da Silva ao declarar guerra ao jornalismo profissional e eleger veículos da imprensa como inimigos políticos. 

Profere bravatas sob medida para provocar sensibilidades “politicamente corretas” e despertar controvérsias e a reação irada nas páginas dos grandes jornais. Só que, ao morder a isca dos “berros”, a imprensa apenas contribui para alimentar a retórica populista e confirmar a opinião do séquito de fiéis que Bolsonaro conduz com destreza pelas redes sociais. Não é coincidência que seu primeiro pronunciamento depois de eleito tenha sido numa delas, nem que os grupos de mensagens por celular tenham sido tão relevantes em sua campanha.

Seria demais ignorar declarações escandalosas ou ofensivas. Mas há uma lição a aprender com os erros da imprensa americana na cobertura do governo Trump, ao transformar todo tuíte em manchete.

O que define um presidente é menos o que diz e mais o que faz.
Bolsonaro está apoiado numa rede articulada de ideólogos, pensadores e políticos do mundo todo. Representa aspirações legítimas da maioria dos brasileiros na economia, na segurança e nos costumes. É para elas que os jornalistas deveriam voltar os olhos, em vez de cair no ardil óbvio dos arroubos ofensivos e dos ataques à “mídia”. Entender como e por que ele conseguiu captá-las tão bem é a missão que cabe ao jornalismo — e a novas biografias.

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