domingo, 25 de novembro de 2018

Luiz Carlos Azedo: A falta de Tancredo

- Correio Braziliense

“Bolsonaro tenta implementar uma radical agenda liberal na economia, mas ainda não tem uma base parlamentar que a respalde no Congresso”

Uma das causas históricas da crise fiscal que o país atravessa e da radicalização política que estamos vivendo talvez tenha sido a morte prematura do presidente Tancredo Neves, que não chegou a tomar posse, em 1985. Explico: a decorrência natural de sua eleição no colégio eleitoral, amparada por ampla mobilização popular, seria a formação de um governo liberal-conservador, capaz de executar um programa com essas características tanto do ponto de vista econômico quanto social, o que nenhum de seus sucessores até hoje fez.

Provavelmente, a Constituinte de 1988 também teria outras características, pois o processo seria liderado por um presidente eleito e parlamentarista; e não por José Sarney, um vice presidente contingenciado por um partido que ganhou e não levou, mas deu as cartas na elaboração da Constituição, sob comando de Ulysses Guimarães, um democrata radical, que era presidencialista e havia liderado a campanha das Diretas, já!

Tancredo havia participado de todas as manifestações dessa campanha, mas nunca afastou a possibilidade de o PMDB disputar a Presidência no colégio eleitoral, onde a eleição era indireta, caso a emenda Dante de Oliveira não fosse aprovada por maioria absoluta, como acabou acontecendo em 25 de abril de 1984. No final de junho, o PDMB lançou seu nome à sucessão do presidente João Figueiredo. Quatro dias depois, a Frente Liberal, dissidência do PDS, rompeu com o governo, e aderiu à candidatura de Tancredo. Na formação da Aliança Democrática, a Frente Liberal indicou Sarney para a vice-presidência.

Com 480 votos, Tancredo Neves atraiu setores conservadores que até então apoiavam o regime militar e derrotou Paulo Maluf, o candidato do antigo PDS, que obteve apenas 180 votos. O presidente eleito estava gravemente enfermo, porém, escondeu a doença e tentou retardar sua internação para depois da posse, temendo que esta não ocorresse. Um dia antes da posse, marcada para 15 de março de 1985, acabou submetido à uma cirurgia de emergência. José Sarney tomou posse como vice-presidente na manhã do dia 15. Depois de ter sido submetido a sete cirurgias, Tancredo faleceu na noite de 21 de abril. Na manhã do dia 22, Sarney foi confirmado na Presidência, depois de muitas negociações de bastidor entre a oposição e os militares. Na posse, Sarney leu o discurso que Tancredo havia rascunhado:

“Não celebramos, hoje, uma vitória política. Esta solenidade não é a do júbilo de uma facção que tenha submetido a outra, mas festa da conciliação nacional, em torno de um programa político amplo, destinado a abrir novo e fecundo tempo ao nosso país. A adesão aos princípios que defendemos não significa, necessariamente, a adesão ao governo que vamos chefiar. Ela se manifestará também no exercício da oposição. Não chegamos ao poder com o propósito de submeter a Nação a um projeto, mas com o de lutar para que ela reassuma, pela soberania do povo, o pleno controle sobre o Estado. A isso chamamos democracia!”

Reformas
O ministro da Fazenda de Tancredo era seu sobrinho, o ex-secretário da Receita Federal Francisco Dornelles, que foi mantido por Sarney, mas deixou o cargo para ser candidato a deputado federal em 1986. Em vez do ajuste fiscal, da reforma tributária e da desestatização que Tancredo pretendia fazer para combater a inflação, mas provocariam uma recessão, Sarney apostou no sucesso do Plano Cruzado, ao escolher Dílson Funaro para o comando da economia. “Sei que estou colocando a cabeça na guilhotina, mas vou arriscar, porque o povo brasileiro merece que se faça isso”, justificou, lançando o slogan “Tudo pelo social”. A principal medida do pacote econômico, o congelamento de preços por um ano, ganhou apoio imediato da população. Sarney convocou os brasileiros a fiscalizar as metas e os preços dos produtos. O sucesso foi espetacular.

Quando o ano terminou, o Brasil registrava seu menor índice de indigência e de pobreza e um crescimento do PIB de 7,49%. O nível de desemprego chegara a 2,16%. Nas eleições, o MDB venceu de ponta a ponta: elegeu 22 dos 23 governadores, 49 senadores e 260 de 487 deputados federais, a ampla maioria da Constituinte. O plano Cruzado previa reajuste automático dos salários sempre que a inflação alcançasse 20%. Com a economia muito aquecida, porém, houve excesso de demanda. Os juros negativos desestimulavam a poupança e pressionavam o consumo. O congelamento de preços fez a rentabilidade dos produtores cair para perto de zero e os produtos sumiram do mercado. O governo não controlava seus gastos, além de perder grandes quantias de reserva internacional. O plano fracassou enquanto o país discutia sua atual Constituição, que foi promulgada em 1988.

A agenda liberal foi retomada em 1989, quando o presidente Collor de Mello foi eleito pelo voto direto, mas seu governo também fracassou, por erros na condução da economia, falta de articulação política e crise ética provocada por uso de caixa dois. Agora, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, muito conservador nos costumes, tenta implementar uma radical agenda liberal na economia, mas ainda não tem uma base parlamentar que a respalde no Congresso. Por recomendação médica, e não por teimosia, como foi o caso de Tancredo, adia para depois da posse uma cirurgia para a retirada da bolsa de colostomia que utiliza desde quando recebeu a facada em Juiz de Fora (MG), em plena campanha eleitoral. A operação estava prevista para 12 de dezembro, dois dias após a sua diplomação. Os médicos do Hospital Albert Einstein constataram “inflamação do peritônio e processo de aderência entre as alças intestinais” que poderiam complicar a cirurgia. Como não se lembrar de Tancredo?

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