quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Monica De Bolle*: Escafandrista de subsolo

- O Estado de S.Paulo

A verdade verdadeira, com tudo que está acontecendo, é que não fazemos a menor ideia do que virá pela frente

“Ano após ano, economistas teóricos produzem montanhas de modelos matemáticos e exploram em grande detalhe suas propriedades formais; econometristas tentam adequar funções algébricas de todos os tipos possíveis essencialmente às mesmas bases de dados sem avançar, de qualquer forma perceptível, a compreensão sistemática da estrutura e da operação de um sistema econômico real.” A observação é de Wassily Leontief, economista russo-americano vencedor do Nobel de Economia em 1973, célebre por seus estudos sobre como determinados setores da economia afetam outros setores, aquilo que muitos conhecem pelo nome técnico de “matriz insumo-produto”. Falecido em 1999, a observação meio niilista de Leontief continua muito atual.

Dia desses estava eu em um seminário aqui em Washington – vai-se a muitos seminários aqui em Washington – e alguém me perguntou o que iria acontecer com o Brasil, mais especificamente com a economia. Respondi com muita simplicidade, sem nenhuma ponta de ironia, “não faço a menor ideia”. Ao que a pessoa, surpresa, retrucou, “nossa, poucas vezes ouvi economista dizer isso”. Tomei como elogio e deixei para lá, mas a verdade é que não faço mesmo a menor ideia de como ficará o Brasil sob o novo regime. Tampouco sei dizer se o novo regime será novo mesmo ou mais do mesmo.

Há quem argumente que a economia está tão mal das pernas, as pessoas tão preparadas para alguma esperança ainda que passageira, que basta que o time de Bolsonaro não erre a mão. Basta que façam uma reforma da Previdência meio amuada, um ajuste fiscal acanhado, que os mercados estarão prontos para reagir com alegria, que o investimento retornará, que o novo governo será capaz de fazer a economia crescer ao menos um tantinho mais do que nos últimos anos, e que isso tudo já terá sido o suficiente para engatar um ciclo. Ciclo meio achacado, mas ciclo de alguma expansão. Segue o raciocínio que isso, em si, já daria ao novo governo ares de credibilidade. Sabem do que mais? É até possível. É até possível que o presidente eleito, mesmo que inexperiente nos ditames do Congresso Nacional, tenha apoio para alguma agenda econômica que caminhe lado a lado com a agenda retrógrada de costumes que anda despontando por aí.

Outra possibilidade é que fiquemos meio a ver navios, perdidos entre as brigas por poder no entorno de Bolsonaro, as desavenças entre membros da equipe econômica e articuladores políticos, as constantes reviravoltas que têm caracterizado o atual processo de transição. Contudo, é justo também dizer que processos de transição podem ser atabalhoados, sem que isso sinalize qualquer coisa sobre a capacidade de organização do governo uma vez instalado. Meu ceticismo impede que acredite fielmente nisso, mas esse é viés pessoal.

Ainda uma terceira possibilidade é que a turma de Paulo Guedes tenha grandes dificuldades para articular uma agenda que não foi discutida durante a campanha e que as reformas, por conseguinte, não saiam do papel, levando a um quadro de turbulência e inflação à vista. Para alguns, esse ainda é o cenário mais provável, mas às vezes me pergunto o seguinte: o País está tão farto da falta de rumo e tão preparado para ver vingar uma alternativa que não seja o PT – isso inclui vários setores da sociedade, do cidadão comum, ao empresário, ao congressista recém-eleito, ao trader sentado na mesa de operações – que quiçá tenha paciência para aguentar alguns desacertos iniciais assim como para aceitar reformas antes tidas como absolutamente impopulares e inviáveis. Sob esse cenário o tanque de Bolsonaro não atola de imediato, quiçá siga em frente até por um tempo mais longo do que o esperado, possivelmente.

A verdade verdadeira é que entre as mudanças políticas que ocorreram nessas eleições com a ascensão das bancadas, sobretudo da frente evangélica, a diluição dos partidos tradicionais com possibilidade de extinção de alguns, e um regime que parece não ter precedentes pois social-democracia de algum tipo é que não é, não fazemos mesmo a menor ideia do que virá pela frente. Portanto, a única imagem que me vem à mente no momento é a de um escafandrista no subsolo escuro, úmido, cavando cenários com as próprias unhas sem ter entendimento sistemático de nada. O inferno não são só os outros. O inferno é a consciência.
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*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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