- Folha de S. Paulo
Autor questiona ideias do guru de Jair Bolsonaro e sua aplicação em propostas e ações do presidente eleito e sua equipe
As boas almas acham que tudo vai se normalizando no Brasil depois da eleição de Jair Bolsonaro. A ordem é pacificar, reduzir as diferenças ou fazer oposição... Construtiva. Afinal, seria preciso manter a cabeça fria. E se as coisas não se passassem exatamente assim?
Bolsonaro não era um candidato igual aos outros, aos que se apresentaram nas eleições de outubro ou em eleições anteriores, nem aos presidentes que se elegeram anteriormente. Exagero? “Complotismo”? Infelizmente, acho que não.
O vencedor do pleito de 28 de outubro não oculta o seu projeto, mesmo se afirma respeitar a Constituição, o que pode ser lido de muitas maneiras. Ele diz quais são as suas convicções e, com os seus partidários, da cúpula ou da base, age. Deixa claro que quer “desmontar o sistema”. E, em setores fundamentais, não deixa dúvida sobre o que isso significa.
As universidades e as escolas devem ser submetidas pela proposta da chamada Escola sem Partido. Houve também o episódio da intervenção nas universidades, que o STF pôs em xeque. Os jornais, já sabemos, devem se comportar bem, se quiserem ter “subsídios”.
Nada de publicar notícias sobre uma funcionária do presidente eleito que é surpreendida pela reportagem muito longe do seu trabalho. E nada de notícias sobre o uso abusivo de uma mídia eletrônica pelo candidato e pelo seu partido, na realidade, a ponta emersa de um iceberg. Nada de escrever coisas incômodas ao presidente. Ou então: nenhuma publicidade oficial e entrada barrada às entrevistas coletivas do novo presidente.
O Judiciário? Uma parte está com ele. A manifestação de cem procuradores e promotores em favor da famigerada Escola sem Partido é um sintoma da maior gravidade. Parte do Judiciário assume com entusiasmo um projeto liberticida.
Há também o projeto de revogar a chamada “PEC da bengala”, o que permitiria a Bolsonaro nomear quatro ministros do Supremo... Uma deputada eleita diz que isso é necessário, já que por razões “ideológicas” (sic!) o STF tende a barrar as brilhantes iniciativas do presidente (Escola sem Partido, excludente de culpabilidade etc.).
A parte do Judiciário que não estiver com o novo poder, cuidado: o filho deputado, o “menino”, não deixou por menos. Não é necessário um jipe nem um sargento para fechar o STF. Militares a pé, dos dois graus inferiores da hierarquia (com o perdão deles), poderão fazer o serviço.
E a Câmara? Não sabemos. Claro que a maioria dos deputados e senadores não é flor de muito bom cheiro. Mas as duas instituições, estas, há que preservá-las. O futuro ministro da Economia quer “prensar” uma delas, e parece que o verbo “tratorar” andou também circulando.
O Congresso aprova aumento dos subsídios dos membros do Judiciário, contrariando a vontade do novo presidente? Organiza-se um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas. Claro que somos contra esse aumento. Mas que uso fará o novo poder desse abaixo-assinado? Serviria de arma para uma batalha contra um Congresso demasiado indócil para o gosto do presidente?
Eduardo Bolsonaro, deputado eleito por São Paulo, aquele mesmo do “soldado mais o cabo”, recidiva com nova entrevista. Dois pontos-chave: se precisar prender 100 mil, diz ele, a propósito da projetada criminalização dos movimentos sociais, prenderemos... Mais claro ainda: seu projeto é o de “proibir” o comunismo, como na Ucrânia, na Polônia e na Indonésia (!). O que significaria, está dito quase com todas as letras na entrevista, pôr fora da lei o PT, o PC do B, e o PSOL. Nada menos...
A verdade é que não só podemos dizer que há um perigo real de que evoluamos para uma forma atípica de ditadura. Sem exagero, acho que o processo que nos levaria por esse caminho já está em andamento.
Para entender quem é Bolsonaro, vale a pena se debruçar sobre sua relação estreita com Olavo de Carvalho. Olavo de Carvalho é um misto de mau filósofo, de iluminado e de ativista, um militante da mídia que é seguido por centenas de milhares de adeptos.
Católico fundamentalista, ele andou falando bem de certos regimes, como o de Viktor Orbán, na Hungria. Nesse país, as “instituições” foram em geral conservadas. Vota-se, há câmaras legislativas e tribunais superiores e ordinários. Entretanto, é muito difícil dizer que a Hungria seja hoje uma democracia.
Orbán assegurou uma maioria confortável no tribunal superior, por meio de nomeações devidamente controladas. Pôs a mão nas escolas e nas universidades. Graças ao controle dos jornais e de algumas medidas na organização das eleições, ele garante um domínio estável sobre o país e impõe práticas restritivas em matéria de costumes. A alternância se tornou quase impossível.
Se há risco de que esse modelo venha a ser implantado do Brasil, é preciso reunir forças, discutir o mais possível, e, “not least”, não se esquecer de desmontar o discurso do adversário. Esse trabalho é da maior importância.
É com essa perspectiva, que dedicarei o que segue a Olavo de Carvalho, em especial à entrevista que o mentor e ideólogo de Jair Bolsonaro deu, duas semanas atrás, à revista Carta Capital.
Vou passar por cima de tudo o que a sua fala tem de simples besteirol ou de puro sofisma: a escola de Frankfurt pregaria a guerra culturalatravés da propaganda do incesto e, por isso, Fernando Haddad, adepto da Escola de Frankfurt defenderia o incesto; a reza de Magno Malta por ocasião do discurso da vitória de Bolsonaro não mereceria crítica porque, afinal, é uma reza e não um ato pornográfico (ele não discute o essencial: a ocasião da reza). Há, ainda, o procedimento que consiste em reduzir relações muito diversificadas, que existem —ou não existem— entre certos elementos, a predicações idênticas ou a identidades, do tipo: candidato do PT remete a PT, PT remete a Foro de São Paulo, Foro de São Paulo remete a Farc, Farc remete a droga, candidato do PT remete a droga... Etc.
(Ver o discurso do futuro chanceler Ernesto Araújo. A postagem do diplomata em seu blog Metapolítica 17 é uma joia: “Haddad é o poste de Lula. Lula é o poste de Maduro, atual gestor do projeto bolivariano. Maduro é o poste de Chávez. Chávez era o poste do socialismo do século 21 de [Ernesto] Laclau. Laclau e todo o marxismo disfarçado de pós-marxismo é o poste do maoismo. O maoismo é o poste do inferno”.
O ministro diz apreciar divisas como “Deus, Família e Pátria”. A dos integralistas brasileiros —versão nacional do fascismo— era “Deus, Pátria e Família”. Já o programa do futuro ministro da Educação, como dá a entender Antonio Prata em coluna na Folha, é mais propriamente o programa de um ministro da Propaganda).
A Escola de Frankfurt visaria o domínio cultural? Falso —devemos responder—, isso seria aproximar “a revolução contra o Capital” de Gramsci, do discurso de Adorno, cético quanto à práxis (naquela conjuntura, pelo menos) e impregnado da dialética do Capital.
As metonímias sofísticas: uma referência menor de um autor ou de uma “escola” (Horkheimer falou uma vez do incesto, e falou sem pregar o incesto, “nota bene”) se transforma em bandeira da “escola” ou do autor. Olavo de Carvalho é antes de tudo um mitômano, e o seu discurso é um tecido de disparates, uma enxurrada de embustes.
Olavo tempera os seus argumentos com dois molhos essenciais: abraços e palavrões —a baixaria mais chula por um lado e, por outro, sorrisos, tapinhas nas costas, conselhos e confissões, em tom de colóquio entre amigos. Esses ingredientes estão presentes em toda fala de Olavo.
Já me ocupei do Olavo filósofo (em “Caminhos da Esquerda”, Companhia das Letras, 2017, pp 47-53). O que o personagem diz sobre Epicuro é besteira, o que escreve sobre Hegel é banalíssimo e ainda por cima errado, o que diz sobre Marx é superficial e também não bate, o que escreve sobre Adorno é falso...
Na realidade, a única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões. Os palavrões cumprem por si sós duas funções: violência e familiaridade. Em vez de se pavonear com pitorescos filósofos de extrema direita da Europa central, Olavo deveria bater à porta de alguma universidade séria da Europa ocidental ou dos EUA.
Vejamos o que ele dizia sobre a Escola sem Partido. O entrevistador pergunta se convidar os alunos a filmar os professores para ver se eles propagam ou não “ideias subversivas” não representaria uma forma de censura à livre manifestação. Como faz com frequência, Olavo começa com um jogo de inversão, respondendo à pergunta mais ou menos do seguinte modo.
Censura? Quem censura não são aqueles que convidam os alunos a filmarem, mas são os professores que se recusam a ser filmados. Afinal, o ensino é uma atividade pública. Todos têm o direito de saber o que se passa na sala de aula. Por que os professores se recusam, por que não querem que todos tenham acesso ao conteúdo das suas aulas? Isso, sim, é censura. E se se empenham tanto na recusa é por uma das três razões seguintes. A comunicação pública de suas aulas revelaria: 1) que eles são comunistas; ou 2) que eles são incompetentes ; ou 3) que eles são pedófilos (sic, fim da referência).
Para responder de maneira convincente e rigorosa a essa argumentação sofística, é preciso começar pelas raízes. O ponto de partida é a sociedade brasileira e sua característica principal: uma sociedade que está no ranking das dez mais desiguais do mundo.
Em sociedades desse tipo, como naquelas em que se tem alternativa ou cumuladamente um poder brutalmente opressivo (por exemplo a russa do início do século 20), a intelligentsia (isto é, a intelectualidade preocupada com as injustiças que reinam no seu país) assume uma atitude crítica para com esse estado de coisas.
Quando se trata de professores, o que ocorre? Pode ser que algum imprudente faça proselitismo, mas isso parece ser raro. O que ocorre é que, ao falar do país, numa aula de história, geografia ou economia, ele deixa transparecer que se situa mais entre os críticos do que entre os que dizem sim ao statu quo.
Isso significa tomar partido? Essa atitude se configura como proselitismo partidário? Nada disso. Os professores reagem como seres humanos e cidadãos do país, como seres dotados de inteligência, de informação e de generosidade.
Ora, é essa situação que os partidários da chamada Escola sem Partido não toleram. Eles querem obrigar os professores a ocultar seus sentimentos, o que é na realidade impossível e teria o efeito de prejudicar o nível do ensino.
É evidente que, se não houver um mínimo de investimento emocional com verniz valorativo, o ensino de disciplinas como a história se torna impossível. Observemos o essencial: essa situação não configura de forma alguma uma “escola com partido”. Nem a recusa do controle indica uma atitude qualquer de censura por parte dos professores, como pretendeu Olavo.
Ela remete simplesmente à liberdade elementar de exercer o seu trabalho, no caso de professor, expondo o conteúdo da sua “matéria”, com o investimento normal afetivo-valorativo que essa atividade exige. Assim, do lado do professor (fora os casos aparentemente raros de proselitismo, usados no entanto como se fossem a regra), não há nem “escola com partido” nem “censura”.
E do outro lado? O que significa o convite a registrar a fala e a imagem do mestre cada vez que o aluno supuser que aquele toma posição política ou partidária? Considero sempre a situação dominante, que é aquela em que o professor, se não assume bandeiras, não se dispõe, entretanto, a inibir completamente suas simpatias pessoais —que, na maioria dos casos, vão na direção das causas progressistas.
Assim, a cada vez que o aluno se convencesse de que o professor não estivesse sendo “neutro”, ele se poria a filmá-lo e, de volta para casa, encaminharia tudo para o pai. Este remeteria o vídeo às autoridades competentes —diretor da escola, polícia ou Ministério Público.
Desse lado, haveria censura, ou anticensura, como quer Olavo? Claro que existe censura. No sentido de que quando o pai do aluno instrui o seu filho a filmar o professor (a narrativa começa por aí) e este procede à filmagem no momento em que lhe parece conveniente, não se está defendendo um direito elementar, como no outro caso.
Trata-se de reprimir o que representa, no caso geral, um verniz de expressão das convicções de quem ensina. Essa repressão não é, por isso, reivindicação de liberdade, mas ato de censura. Também não se diga que, sendo o ensino uma atividade de interesse público, é normal que todas as aulas sejam acessíveis ao público. Há acessibilidade e acessibilidade.
Em muitas circunstâncias as aulas são públicas. Mas a publicidade se faz com vistas ao interesse teórico das aulas e à transmissão do saber. Isso é completamente diferente da gravação que visa o controle policial do professor.
Porém imaginemos que este tenha de fato ultrapassado os limites. Estou convencido de que isso não ocorre com frequência e que tampouco esse seja o maior problema da educação brasileira. Mas, se ocorrer, o mal que poderia haver nisso é certamente muito menor do que aquele que se produz ao introduzir um dispositivo repressivo que ninguém controla, nem o pai nem o filho.
Desencadeia-se uma caça às bruxas que leva ao pior: no limite, ao fascismo. Os professores ficam com medo de dar aulas (o que já está acontecendo), temem a presença dos alunos, o que afeta não o professor partidário, mas o comum dos mestres, que não é sectário e, na maioria dos casos, é sério e responsável.
Hoje já não se dá aula no Brasil sem um estresse terrível, derivado da ideia de que um aluno poderia denunciar o professor porque este lhe pareceu animado demais ao falar, por exemplo, da queda do czarismo ou da revolução de 1848.
A atitude da dupla pai de aluno/aluno, que o pessoal da “nova ordem” quer impor ao país, é assim repressiva, uma atitude de censura, não de contracensura.
Desse modo, não só não se pode inverter os sinais como pretende Olavo de Carvalho (a censura seria, na realidade, reivindicação de liberdade, e vice-versa) mas também não teríamos nem mesmo uma espécie de “empate”, como se as duas causas tivessem a mesma legitimidade.
Na realidade, não existe simetria no caso, e o julgamento que se impõe intuitivamente é, de fato, o mais rigoroso. A disposição de filmar o professor para registrar eventuais transgressões à neutralidade é alimentada por um impulso político, o de dizer amém ao statu quo —impulso que pode e deve ser chamado de partidário, no sentido de que, mesmo se ele não vier de um único partido (e no caso talvez venha), brota de uma filosofia política bem definida, a que visa conservar a situação presente com as suas violências e injustiças. O que significa: a suposta Escola sem Partido é, na realidade, escola com partido.
Mas, se dizemos que há partido aí, não deveríamos dizer que também há partido no lado de lá? Não: se não há simetria quanto a “censura”, também não há quanto a “partido”. A não simetria se conserva quando passamos de um termo ao outro. É que a democracia, que inclui o direito de ser fiel às suas ideias (desde que não se trate de ideias liberticidas), não é propriamente simétrica a um projeto antidemocrático. A democracia é a regra definida pela Constituição. A ruptura da democracia é a transgressão dos institutos da Constituição.
Olavo, no entanto, continua, enveredando por um caminho insólito (que vai ser o que ele seguirá, em declaração posterior, em que se reafirma partidário da Escola sem Partido quanto ao conteúdo, mas adversário dela na denominação e na tática). Ele diz que não pede neutralidade absoluta. Isso não existe; todas as pessoas tomam posição (fim da referência).
Há aí uma virada, que na sua essência —se nesse registro a essência fosse o decisivo— seria considerável. De fato, o interessante nessa suíte é que, levada a sério, ela poderia servir como ponto de partida para desconstruir a fala inicial, e foi este novo argumento que serviu como ponto de partida para a minha contra-argumentação.
De fato, o reconhecimento de que não há neutralidade absoluta corrói (ou começa a corroer) o dispositivo de justificação da censura, porque abre os olhos para a possibilidade e a realidade de um envolvimento discreto com valores, que é aliás a regra em aula sem proselitismo.
Assim, Olavo como que introduz pelo menos parte do argumento do adversário, o que em princípio invalidaria o que ele disse no início. Só que Olavo o faz de tal maneira que se tem a impressão de que essa continuação não desmente o início, mas o confirma. Esse efeito se obtém simplesmente pela continuidade do seu discurso e pelo silêncio em torno da virada que nele se opera.
Porém o prestidigitador segue, e a argumentação se completa —cereja no bolo— por uma afirmação que desarma o interlocutor. Depois de dizer que não quer neutralidade absoluta, porque ela não existe, ele acrescenta que não deseja censurar ninguém, pelo contrário, que ele quer que todas as opiniões se manifestem, quer o pluralismo. Nas condições atuais —ele explica—, quem pensa diferente não pode se manifestar (fim da referência).
Nesse momento, o interlocutor vencido dirá aliviado, como num filme de Eisenstein com letreiros em inglês: “What a democrat!”. Ele quer o pluralismo, nada melhor, é isso mesmo que todos queremos, e os que dizem que ele é autocrata se enganam redondamente.
Só que... Essa cereja no bolo contradiz de novo a fala inicial (a censura aos professores impede o pluralismo), mesmo se ela é apresentada, ainda uma vez, como se não a desmentisse, mas a confirmasse. Ele não dá um pio sobre a dificuldade que existe aí: censura a professores contradiz a liberdade plural.
O pretenso direito de filmar as aulas não terá certamente o suposto efeito democrático. Os que procederem às filmagens, como os que as ordenaram, continuarão visando denunciar os professores por proselitismo. Eles não adotarão a filosofia da transparência nem acreditarão nisso. E Olavo sabe disso.
De resto, ele próprio não acredita nessa fábula que o faria passar por defensor de uma escola à sueca ou à finlandesa. Quanto à ideia de que ninguém pode abrir a boca numa discussão em aula, isso é falso —mesmo que seja verdade que é sempre mais fácil falar quando a maioria concorda consigo do que quando a maioria discorda. Enquanto Olavo finge que tira o corpo, para desarmar a crítica, a lei famigerada segue o seu curso. Ele sabe disso e vai falando.
O repórter pergunta a Olavo se se justifica o elogio que Bolsonaro fez do torturador Ustra. Olavo responde que Bolsonaro não defendeu a tortura, apenas disse que Ustra não era torturador. Isto é duvidoso, já que, na famosa votação do pedido de impeachment, Bolsonaro prestou homenagem a Ustra, referindo-se a ele como “o pavor de Dilma Rousseff”. O pavor de Dilma Rousseff? Mas se é pelo menos incerto que a recusa em imputar a prática da tortura a Ustra (ou a dúvida sobre essa imputação) tenha sido a justificação fornecida por Bolsonaro para elogiar o coronel, este é certamente o argumento de Olavo para justificar Bolsonaro.
Tentemos desenredar esse imbróglio. De que Ustra tenha sido torturador, não parece haver dúvida. Torturador e/ou chefe “omisso” diante da tortura (que, em matéria de violência, a responsabilidade direta e a indireta não são tão diferentes, foi afirmado pelo próprio Olavo ao discutir com um ex-guerrilheiro). O que não o impede de tentar eximir Ustra, insistindo no fato de que este foi condenado pelo STF só por omissão.
As vítimas que sobreviveram contam como foi essa “omissão”. Ustra pôs, sim, a mão na massa e até mandou virem os filhos das vítimas para assistir ao espetáculo. Não há razão para duvidar desse tipo de testemunhas. Assim, não há problema a esse respeito, e, como vimos, o próprio Bolsonaro, prudente, parece evitar um desmentido direto da imputação.
A verdadeira questão é: pode-se elogiar um torturador? A qual nos leva à pergunta fundante ou fundamental: a tortura é admissível? Vê-se o sentido do passe de mágica de Olavo de Carvalho. Ao ser inquirido sobre o seu juízo a respeito do pronunciamento de Bolsonaro, ele substitui as perguntas pertinentes por uma pergunta que não tem interesse, porque a resposta é conhecida.
Pois Olavo se arranja para dizer que seria essa pergunta desinteressante a que estaria na base da declaração de Bolsonaro. Pergunta a que este responderia afirmando que Ustra era inocente. De defensor de um torturador, Bolsonaro passa, assim, a desempenhar o papel de advogado de um inocente.
Como isso foi possível (refazendo ainda uma vez o caminho)? Pela sub-repção das respostas pertinentes (é legítimo defender a tortura e os torturadores, ou então, é ilegítimo defender a tortura e os torturadores), através do método da substituição da pergunta.
Uma vez posta a nova pergunta (Ustra torturou ou não torturou?), basta optar pela resposta que tem mais cara de generosa e respeitadora de direitos. Presunção de inocência, ou “in dubio pro reo”, o bom Bolsonaro teria declarado que não é verdade que Ustra torturou, defendendo assim um presumido inocente. Conclui-se que, longe de ser o ogro que se supõe —valha a velha sofística!—, Bolsonaro defende na realidade as boas causas e até os direitos do homem, Q.E.D.
Olavo acha que houve tortura no Brasil, mas “pouca”. A ditadura militar não teria matado quase ninguém, e eu acrescentaria, nem —a frio— um bom número de prisioneiros de guerrilhas (nenhuma ética civil ou militar justifica, em quaisquer circunstâncias, a liquidação a frio de prisioneiros)? Quanto à exigência de que se exibissem “olhos furados”, “ossos partidos”, todo mundo sabe que os torturadores faziam questão de deixar um mínimo de marcas.
Na entrevista a Carta Capital, como também em seus livros, Olavo de Carvalho se declara adversário do fascismo. As pessoas não sabem o que é fascismo, diz.
(A propósito: a tese de Olavo de que Hitler é de esquerda é pura charlatanice. Certo, o partido de Hitler, ou antes, aquele ao qual ele aderiu, se chamava Nacional Socialista, mas Hitler apreciava a hierarquia, detestava a igualdade, era inimigo mortal da Revolução Francesa e de toda a tradição socialista etc).
Olavo acrescenta: eu até discuti com um fascista, o ideólogo fascista russo Aleksandr Dugin, amigo de Putin. Imaginem. Eu, que discuti com Dugin, sou chamado de fascista (fim da referência).
Afinal, quem é Olavo, em termos políticos? Dados os limites de espaço, vou utilizar referências suficientes. Já falei da sua simpatia pelo regime de Viktor Orbán, na Hungria, e sobre o que representa esse regime. Um outro elemento essencial, um dado tão imediato que até o perdemos de vista, é o fato de que ele apoiou e apoia Bolsonaro.
A declaração desse apoio pode ser encontrada no vídeo “Bolsonaro não é o verdadeiro candidato”. Nele, Olavo conta a história dos seus livros e termina declarando apoio ao capitão. Este não seria nem de direita nem de esquerda, já que é o único candidato que “não tem ideologia”, tem apenas opiniões (impostura evidente: o evangelho ideológico de extrema direita que o candidato pratica e prega é ideologia, sim, e muito mais perigosa do que qualquer grande ideologia, o liberalismo ou o socialismo democrático).
Bolsonaro teria o mérito de ir contra todos os partidos (engano: apesar das aparências, isto não é mérito. Bolsonaro não está além dos partidos, está aquém deles; ele combate aquilo que, apesar de tudo, eles têm de positivo —o respeito à ordem democrática).
Além do que, ele escaparia da dominação esquerdista (mitologia pesada: os partidos de esquerda não são de forma alguma dominantes e, bem ou mal, são os que defendem um mínimo de justiça social, coisa que o ideólogo detesta).
Ao recomendar Bolsonaro, bom candidato, Olavo diz, entretanto, que preferia o caminho da formação de comitês de bairro (!). Vê-se que o filosofastro-ativista sonha com uma política de massa... Mas no meio dessa peça lírica, em que se alternam considerações teóricas ou pseudoteóricas com histórias pessoais da família ou de seus amigos, emerge o segredo.
Ao falar do que precisa ser feito no Brasil, diz inocentemente: é preciso pôr na ilegalidade o PT (e, acrescentemos, também o PSOL e o PC do B, é claro), porque é um partido ligado a um centro internacional. Nada menos do que isso (conforme a fala do filho de Bolsonaro). A quantos eleitores Olavo quer negar o voto, 50 milhões?
A justificativa é de que o PT depende de um centro que seria o Foro de São Paulo. Tolice. A internacional comunista morreu há muito tempo. O tal Foro de São Paulo teve uma importância muito relativa. Não foi nenhum verdadeiro centro e hoje deve vegetar. Atualmente, o PSL talvez tenha mais contatos internacionais do que qualquer dos partidos de esquerda.
Se Bolsonaro e os seus querem tirar da legalidade os partidos da esquerda, não é por temor ao “comunismo”. O “comunismo”, a rigor, não existe mais. Na sua forma autêntica, a do marxismo ortodoxo, nunca existiu; na sua caricatura stalinista restam, é verdade, governos como os de Cuba, Coreia do Norte ou Venezuela, respectivamente um Estado burocrático opressivo, um totalitarismo sangrento e um populismo corrupto que não hesita em abrir fogo contra manifestantes.
É contra eles que vai a campanha de Olavo contra o comunismo? Também (os inimigos de nossos inimigos não são nossos amigos), mas de modo acessório. O que ele chama de “comunistas” são sobretudo as diversas tendências da esquerda democrática no mundo (social-democracia, esquerdas trabalhistas, esquerda cristã etc.). E são estas que ele de fato combate.
O projeto político de pôr na ilegalidade todos os partidos de esquerda caracterizaria que tipo de política? Fascista? Mas Olavo não se declara inimigo dos fascistas?
Houve até aqui duas ondas autocráticas de direita, a da primeira metade do século 20 e a das primeiras décadas do século 21. Nas duas levas, temos uma variedade de casos, desde exemplares muito virulentos a formações menos brutais.
Na primeira onda, estas últimas foram dominantes, e uma delas levou a um genocídio de proporções gigantescas. Mas o nazismo foi contemporâneo de governos menos radicais, como o autocratismo português e mesmo o franquismo, passada a guerra civil.
Na segunda leva, há também uma variedade de modelos, porém não domina até aqui a forma genocida —das variedades modernas, a mais homicida é o governo de Duterte, nas Filipinas. O modelo que hoje parece dominante é o de Orbán na Hungria, que vai se impondo na Polônia (uma das referências de Eduardo Bolsonaro), na República Tcheca e na Eslováquia.
Como denominar essa nova onda, e em particular como chamar a figura que corresponderia eventualmente ao caso brasileiro? Para a forma típica do regime de Orbán e de outros análogos, há o neologismo “democratura”, que é interessante e talvez convenha para designar igualmente a nova onda em geral, do mesmo modo que “fascista” nomeava um caso particular mas também, com frequência, o conjunto da primeira leva.
Mas continuemos: Olavo diz que não é fascista e que até já discutiu com fascistas. Será que esse fato se ajusta à minha leitura? Ou eu estaria forçando a barra? Pois tome-se o modelo: Viktor Orbán. O regime de Orbán e do seu partido, o Fidesz, tem como adversário um outro partido, pequeno e mais ou menos neutralizado pelo Fidesz, porém existente.
Esse partido é o Jobbik. Apesar de uma tentativa de “desdemonização“ recente, esse partido é notoriamente racista e antissemita; ele tem a sua própria “guarda”, com um núcleo “viril”, é acusado de violências e de homicídios contra a população cigana e simpatiza com Dugin. Assim, Orbán é, à sua maneira, adversário dos fascistas. Estes encarnam demasiado —mais do que seria “necessário” hoje— a primeira onda e, por isso mesmo, na segunda, só podem ser marginais.
É com legitimidade idêntica à de Orbán que Olavo pode se declarar antifascista ou antinazista. É a oposição entre a forma moderna e a forma antiga do autocratismo. Os neofascistas contra os fascistas. Contudo, não é preciso ser nazista nem fascista à antiga para dar o apito inicial para muitos horrores (ver Duterte, nas Filipinas).
Dirão talvez que exagero: não é certo que a ameaça se efetive. De fato não é certo que ela se efetive por inteiro. Entretanto, é certo e provado que o projeto político de Bolsonaro e de seu mestre Olavo vai no sentido indicado, que não é o da democracia; e que o projeto já está sendo implementado.
Em resumo, não se deve dar ouvidos aos “cientistas políticos” que nos garantem que as “instituições brasileiras” são “sólidas”. Hoje, menos do que destruir as instituições, os inimigos da democracia as ocupam e as cristalizam em seu proveito.
Entretanto, ainda é possível evitar que a tragédia se consume. Não há outro caminho senão o de denunciar o verdadeiro caráter do poder que vai se instalando no Brasil e o de tentar pôr em xeque, no limite das nossas forças, suas jogadas. Para os próximos dias e as próximas semanas, a urgência absoluta é dar parada ao seu primeiro lance, a —ó, quão funesta— lei da Escola sem Partido.
(Com agradecimentos a meu amigo Arthur Hussne Bernardo, uma das primeiras pessoas a se dar conta, no Brasil, dos laços estreitos que unem Bolsonaro e Olavo. Este ensaio tem dívidas para com um artigo de Arthur, “O Bolsonarismo É um Olavismo”, que sairá em breve).
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Ruy Fausto é professor emérito do Departamento de Filosofia da USP e autor de “Caminhos da Esquerda” (Companhia das Letras).
excelente! MAM
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