sábado, 24 de novembro de 2018

Sérgio Augusto: O Rio de Clarice

- O Estado de S. Paulo

Na cidade, Clarice Lispector fixou-se em definitivo no Leme, que chamava de “minha terra”

Oito anos atrás, num ciclo de palestras organizado pelo Instituto Moreira Salles com o título geral de Cidade por Escrito, o português Carlos Mendes de Souza discorreu sobre a apaixonada relação de Clarice Lispector com o Rio de Janeiro. Agora nos chega por escrito, impresso e com lombada, um deleitante tour pela cidade igualmente a partir da biografia e da ficção de Clarice, conduzido pela pesquisadora Teresa Montero, que há quase três décadas se dedica a perpetuar a memória da escritora.

O Rio de Clarice – Passeio Afetivo pela Cidade (Autêntica, 188 págs.) pertence a um híbrido subgênero de não ficção rotulável de turístico-literário ou topobiográfico: guias de viagem consagrados à redescoberta de uma cidade através da vida e da obra de escritores que a vivenciaram e retrataram em prosa ou verso. Clarice nasceu na Ucrânia, morou em Maceió, Recife, Belém, Nápoles, Berna, Torquay (Inglaterra), Washington – casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, só no exterior viveu 16 anos – mas fez do Rio a sua Pasárgada, o pano de fundo de quase todas as suas narrativas ficcionais, de suas crônicas e reportagens, mesmo daqueles contos transcorridos no interior de um apartamento ou de sua alma.

Ela residiu cinco anos na Tijuca, circulou intensamente pelo centro, como estudante (de Direito), funcionária da Agência Nacional (de que foi tradutora, redatora e repórter) e colaboradora de revistas e jornais (Senhor, Jornal do Brasil, Manchete); viveu no Flamengo e em Botafogo, até fixar-se em definitivo no Leme, que chamava de “minha terra”. Lá morou de 1959 até morrer, em 1977, e escreveu 12 dos 17 livros que publicou ao longo de quatro décadas.

Ainda é possível visitar alguns dos locais por ela habitados, menos os dois primeiros, nas ruas Lúcio de Mendonça e Mariz e Barros, na Tijuca, há muito substituídos por outras edificações. As geminadas casas de dois andares da pitoresca Vila Saavedra, no n.º 76 da Rua Silveira Martins, no Catete, seu endereço entre 1940 e 1943, permanecem de pé porque preservadas pelo Patrimônio Histórico.

Também continuam onde sempre estiveram os edifícios Santa Alice e Val de Palmas, ambos na Rua Marquês de Abrantes, em Botafogo; assim como o 102 da Rua do Russell, na confluência da Glória com o Catete, residência dos sogros e provisório pouso dos Gurgel Valente até a emancipadora mudança para o 403 da Rua São Clemente, em Botafogo.

Seguindo à risca os guias que lhe serviram de modelo, Montero localiza, descreve e resume a história de cada local que Clarice costumava frequentar, desde a chegada ao porto da Praça Mauá, em 1935, e suas eventuais aparições e referências nos textos da escritora. Seu primeiro impacto foi deparar com o Edifício do jornal A Noite (e também da Rádio Nacional), primeiro arranha-céu da América da Latina, em cujo terceiro andar iria trabalhar, sete anos mais tarde. O centro carioca seria, para ela, um lugar de passagem e inspiração permanentes, mesmo depois que se recolheu à zona sul da cidade, basicamente ao Leme e a Copacabana. Macabéa, a heroína de seu último romance, A Hora da Estrela, mora ao lado da Praça Mauá, na Rua do Acre.

Flanar pela Floresta da Tijuca, a Feira de São Cristóvão (onde comprava melado, beiju, e encantava-se com as barracas e cantadores de viola), o Jardim Botânico (ganhou lá, postumamente, um espaço exclusivo e seis bancos com frases de sua autoria), frequentar os cinemas de Copacabana (também considerava o Caruso o mais confortável da cidade), almoçar aos domingos com o artista plástico Augusto Rodrigues no Largo do Boticário – eram esses os programas favoritos ou mais frequentes da escritora na mui leal e heroica cidade em que se naturalizou brasileira e fincou suas raízes mais profundas.

No Leme, refúgio definitivo, passou seis anos no apartamento 301 do Edifício Visconde de Pelotas (no início da Rua General Ribeiro da Costa) e 12 no 701 do Edifício Macedo (na Gustavo Sampaio, 88). Cercada de amigos, como Burle Marx, o designer Aloisio Magalhães, a cronista Elsie Lessa, fazia tudo a pé no bairro e até hoje é possível encontrar vários daqueles que ali a atendiam nas farmácias, padarias, mercearias, bancas de jornais e botecos. Era vizinha de La Fiorentina, histórica cantina italiana que há décadas agrega certa boemia artística e intelectual do Rio, um Gigetto de frente para o mar, que frequentou menos do que talvez gostaria.

Conheci apenas o apartamento da Gustavo Sampaio. Visitei-o duas vezes, em 1970 para um perfil encomendado pela Setenta, extravagante revista da Abril programada para durar só 12 números, e, quatro anos depois, para uma entrevista coletiva ao Pasquim, ao lado de Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa (vizinho dela) e Nélida Piñon. Sentados no chão da sala, ao lado de uma estante de livros, Ivan e eu passamos parte da entrevista fuxicando as leituras da anfitriã, notadamente os trechos daquele livro de entrevistas com escritores famosos à Paris Review destacados por ela.

Tal peraltice não me impediu de repetir uma provocação que fizera no primeiro encontro. “Clarice, você concorda que bicho é melhor que gente?” Sabia que sim, que ela concordava, mas sua resposta foi, então, meio evasiva: “Domingo eu fui ao Jardim Zoológico. É uma coisa maravilhosa”. Encantara-se sobremodo pela girafa, altiva e silenciosa, sem no entanto adjetivá-la.

No primeiro encontro fora explícita: “Os animais são uma forma acessível de gente. As pessoas são inacessíveis porque nos julgam, ao contrário dos bichos, que me parecem criaturas mais próximas de Deus”. Disse isso afagando a cabeça de Ulisses, seu amado vira-latas, “o mulatinho da casa”. Um dia perguntaram a Clarice de que modo ela retrataria a morte. “O meu cachorro me procurando por todo o apartamento”, respondeu. Lindo, não?

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