sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Fernando Abrucio: Aprendizado sobre o que pode dar certo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito com a promessa de ser completamente diferente do atual sistema - ou, como ele diria, de tudo que está aí. Não será o primeiro a prometer um mandato com esse perfil. A primeira vitória de Lula, em 2002, também apostava no discurso mudancista. É bem verdade que o petista escreveu a "Carta aos Brasileiros" para acalmar o mercado, mas Bolsonaro fez isso do seu jeito, escolhendo Paulo Guedes como o seu fiador. Claro que muitas coisas precisam ser melhoradas nas políticas públicas brasileiras, porém, o caminho para construir tal transformação passa pelo conhecimento do que pode dar certo, e não pela reinvenção da roda.

A ânsia pela mudança do país é legítima por conta dos inúmeros problemas que temos, a maioria deles com maior impacto sobre os mais pobres. Não obstante, é necessário ter dois cuidados. O primeiro está em evitar a adoção de uma lógica de alteração de 180 graus de toda a gestão pública. O outro é não ter parâmetros claros para modificar as políticas públicas, que poderiam ser fornecidos, como inspiração, pela experiência internacional.

Com relação ao primeiro perigo do mudancismo bolsonarista, cabe destacar que já há uma enorme tradição no Brasil de descontinuidade de políticas públicas, com maior presença nos governos estaduais e municipais. Basta haver a alternância do poder que o recém-eleito geralmente prefere trocar as pessoas e as políticas da gestão anterior. Esse processo normalmente é acompanhado pela criação de novos programas, com nomes bonitos e chamativos. Às vezes, é só uma remodelação com nomenclatura diferente e banhada em marketing, e às vezes, nos piores casos, muda-se tudo sem saber o que estava dando certo e o que deveria efetivamente ser alterado.

O novo governo deve ter em conta que há três situações nas políticas públicas brasileiras. A primeira é aquela em que o modelo de gestão e os resultados têm sido, até o momento, muito bons. Nesse caso, pequenos aperfeiçoamentos sempre são possíveis, mas não se deve ter como foco tais questões. Modificar demais o Bolsa Família, por exemplo, seria apenas uma forma ideológica e não pragmática de gestão pública. Ou, exemplificando num campo em que ainda não houve implementação, mas cuja ideia é bastante consensual, reformular por completo a Base Nacional Comum Curricular seria perder o que foi construído a duras penas pelos governos e pela sociedade em prol de um modelo pedagógico mais organizado.

Uma segunda situação é aquela em que houve melhorias, mas na qual ainda há muitos elementos a serem aperfeiçoados. O SUS é uma grande invenção de modelo sistêmico de política pública que pretende atender universalmente a população de um país com muitos pobres, e que busca integração entre os níveis de governo. Esse arcabouço geral é bastante inovador, contudo, sua execução exige inegavelmente reformas e melhorias institucionais, especialmente no campo da gestão. Só que tais alterações devem servir para responder ao objetivo geral do modelo, em vez de criar um sistema de saúde segregador.

Existem, ademais, as situações que exigem mudanças de maior escala, por conta do fracasso de políticas públicas montadas pós-1988. Mesmo nesses casos, é preciso aprender com a experiência passada. Se se quer ter um novo ciclo de privatizações, é fundamental ter um diagnóstico do modelo adotado na era FHC, captando as lições daquele período. Na mesma linha, a segurança pública precisa de um modelo de gestão mais efetivo, mas não se pode jogar a criança fora com a água do banho. Por exemplo, alguns governos subnacionais conseguiram reduzir homicídios com ações nos campos da informação, prevenção e capacitação da burocracia. Conhecer melhor tais casos pode ser um excelente guia para uma transformação mais ampla e sistêmica desse setor.

O sucesso do governo Bolsonaro dependerá muito do conhecimento do estado da arte das políticas públicas brasileiras para evitar um mudancismo estéril. A eleição já passou e o arcabouço geral do Poder Executivo está quase fechado. Antes de começar o mandato, ainda vale a pena conversar com pessoas que comandaram programas que deram certo, inclusive em Estados e municípios. A briga política não pode ser um impeditivo para o aprendizado daqueles que vão iniciar um novo ciclo.

Isso é tanto mais verdadeiro porque haverá a maior dança das cadeiras desde o período Collor, e muita gente que chegará ao poder tem pouca ou nenhuma experiência no setor público. Os novos mandatários em Brasília que quiserem começar suas gestões nos ministérios reinventando a roda e negligenciando o passado ou outros exemplos no Brasil poderão errar feio. Por esse caminho, vão demorar mais tempo para entender os caminhos que podem levar aos objetivos que desejam alcançar.

E aqui entra o segundo perigo de um mudancismo bolsonarista: não ter parâmetros razoavelmente claros sobre o que dá certo nas políticas públicas em termos de evidências científicas. Neste sentido, seria importante que os novos gestores federais conhecessem experiências internacionais bem-sucedidas, pelo menos os ocupantes dos postos mais importantes. Isso lhes forneceria um conhecimento prático e fundamentado sobre alternativas para a mudança, que poderia iluminar um processo de transformação - ou mesmo de confirmação daquilo que não deve ser foco prioritário de reformas.

Uma postura como essa não seria nova e exemplifico com um caso que deveria ser regra. Quando Bresser Pereira foi convidado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para comandar o Ministério da Administração e Reforma do Estado, uma de suas primeiras ações foi ligar para especialistas internacionais e pedir que lhe indicassem modelos de reforma da gestão que consideravam paradigmáticos. De posse dessas informações prévias, o então ministro visitou alguns países - e continuou a fazer esse "benchmarking" internacional durante todo o seu período no ministério. Foi essa uma das principais bases do seu projeto de reformas, que melhorou algumas coisas importantes na administração pública federal e deixou algumas ideias que se tornaram sementes para melhoria de políticas em outros governos.

Evidentemente que qualquer ideia adotada com sucesso em outro país precisa levar em conta o contexto brasileiro. Entretanto, adotar uma postura provinciana que só afirme o lado jaboticaba do Brasil, definido como uma singularidade absoluta, reduz a possibilidade de aprendermos com instrumentos e ações testados e avaliados em outras realidades. Acompanharmos evidências científicas constatadas em larga escala é uma forma de construir atalhos para diminuir os erros das políticas públicas.

Um exemplo nessa linha está no campo educacional. A observação sobre o que fazem os países mais bem colocados no principal exame internacional, o Pisa ("Programme for International Student Assessment"), cujo público são jovens de 15 anos de idade pertencentes a cerca de 70 países, deveria ser uma bússola para o Brasil. É interessante porque são nações com sistemas políticos diferentes e que não são dominadas pelo mesmo espectro ideológico, como exemplificam os casos de Cingapura, Finlândia e Canadá. Na América Latina, a experiência mais relevante de avanço é a do Chile, hoje comandado por um partido conservador, que está continuando - e aperfeiçoando - uma série de programas criados por legendas de centro-esquerda. Aliás, uma das características mais marcantes desses exemplos bem-sucedidos é grande continuidade das políticas públicas em educação, com mudanças incrementais e sistêmicas norteadas por uma visão de longo prazo.

O próximo ministro da educação e sua nova equipe poderiam visitar essas experiências. Veriam que políticas como um modelo integrado de formação de professores com o futuro desenvolvimento profissional deles, o fortalecimento das competências de liderança e gestão dos diretores escolares, a criação de currículos nacionais, a cooperação entre as escolas de melhor desempenho e as unidades que têm maiores dificuldades e carências, o uso de avaliações constantes para acompanhar, publicizar e entender o processo de aprendizado dos alunos, entre as principais medidas, aparecem em todos os países que estão entre os melhores do Pisa. Perceberiam também que nenhum deles adota uma política como a escola sem partido, porque transformar o ambiente escolar em um lugar de conflagração e de baixa confiança entre professores e alunos é a receita para a piora do sistema educacional.

Talvez antes do contato com a experiência internacional, o novo comando do MEC poderia ler o livro "Políticas Educacionais no Brasil: O que Podemos Aprender com Casos Reais de Implementação?", organizado por Danilo Dalmon, Caetano Siqueira e Felipe Braga, três jovens brasileiros que estudaram em Stanford e têm, nos últimos anos, ajudado muito a educação brasileira. Além de uma análise dos principais conceitos de gestão educacional e um panorama sobre a trajetória histórica da área, essa obra apresenta seis casos de reforma educacional em governos subnacionais. Neles, mais do que os êxitos, o importante é entender os caminhos e os impasses colocados para quem quer mudar. Eis aí um bom guia para a proposta mudancista do novo presidente.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

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