segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Gustavo Loyola: Os riscos de uma meia-privatização

- Valor Econômico

O mais correto seria a privatização por inteiro de pelo menos um dos grandes bancos públicos federais

Segundo o noticiário, ao escolher os futuros presidentes da Caixa Econômica Federal (CEF) e do Banco do Brasil (BB), o economista Paulo Guedes lhes teria recomendado "privatizar o que for possível" para enxugar essas instituições e torná-las mais competitivas, tudo em consonância com a ideia-força de reduzir o papel do Estado. Ainda de acordo com a imprensa, fiéis a essa orientação, os novos dirigentes estariam dispostos a se desfazer de áreas como cartões de crédito, gestão de recursos, previdência e seguros. No final desse processo, os bancos ficariam apenas com as áreas relacionadas de alguma forma a políticas públicas. Uma meia-privatização, enfim.

Ocorre que, ao despir o BB e CEF de áreas rentáveis e pouco demandantes de capital, o governo estaria levando tais instituições a regredirem à década dos anos 1960, tempo em que a intermediação financeira era muito menos complexa e diversificada do que no mundo atual. O setor público se manteria acionista majoritário do "osso", ao tempo em que venderia o "filé" para acionistas privados. Os bancos públicos virariam presa fácil para as fintechs e para bancos privados que operam sob forma de conglomerado financeiro. Tornar-se-iam, muito provavelmente, máquinas de fazer prejuízo para o Erário. Ocorreria o contrário do pretendido.

Por óbvio, parece de todo sensato que qualquer empresa, ainda mais quando controlada pelo Estado, se desfaça de atividades que não estão no foco principal de sua atividade e onde não têm vantagens competitivas. Desse modo, por exemplo, merece aplausos a intenção do novo presidente da Petrobras de se desfazer das atividades de distribuição de combustíveis que, como assinalado por ele, se trata, afinal de contas, apenas de uma "rede de lojas". Contudo, é diferente o caso da maioria dos negócios conduzidos pelos bancos ditos universais, sejam eles de controle estatal ou privado.

Quando se mira a história do Sistema Financeiro Nacional (SFN), a partir das reformas trazidas pelas leis 4.380/64 (criação do BNH), 4.595/64 (criação do Banco Central), 4.728/65 (lei do mercado de capitais), o que se tem é uma trajetória gradual - mas inexorável - de formação de conglomerados financeiros, contrariando o espírito e a letra dessa legislação que pretendia estruturar o SFN com instituições especializadas e estanques entre si, numa espécie de versão brasileira do "Glass-Steagall Act" americano de 1933. Tal processo desaguou na permissão explícita pelo CMN, em meados da década dos 1980, para a criação dos bancos múltiplos ou universais, na forma que hoje conhecemos.

Assim, o BB e o CEF de hoje, como grandes bancos varejistas que são, espelham no leque de seus negócios a lógica do banco universal que prevaleceu no mercado bancário brasileiro, sendo a Caixa uma adesão mais tardia a esse modelo do que o Banco do Brasil. A diferença é que se mantiveram como grandes operadores do crédito direcionado, o BB no crédito rural e a CEF no imobiliário, além de administrarem recursos de esquemas de poupança compulsória como o FGTS ou fundos constitucionais (o FCO no BB).

Nesse contexto, a venda particionada das áreas rentáveis de negócios do BB e da CEF levariam à queda da rentabilidade dessas instituições, que continuariam carregando custos elevados da rede física de agências, cujo enxugamento encontraria limites pela própria intenção mantê-las como agentes de políticas públicas. Vale ressaltar que as necessidades de capital dos bancos tampouco se alterariam substantivamente, já que eles continuariam com a atividade de concessão de crédito que, pelas normas de Basiléia III, adotadas pelo Banco Central, são as mais exigentes em termos de capital regulatório.

O Tesouro Nacional permaneceria com responsabilidade de prover capital para os bancos públicos que provavelmente dariam retornos abaixo do custo de oportunidade para os recursos para o Erário.

Outro aspecto que deve ser salientado é que hoje em dia vivemos na era do "unbundling" no mercado financeiro, ou seja, os consumidores, em vez de adquirir serviços financeiros em uma só instituição, passaram a escolher ofertantes especializados de acordo com suas necessidades e preferências, a partir de soluções tecnológicas amigáveis, na grande maioria dos casos, acessíveis por meio de "smartphones" e outros dispositivos móveis. Essa tendência representa desafio competitivo importante para os bancos universais, incluindo, obviamente, a CEF e o BB. Numa situação como essa, a venda de negócios como emissão de cartões de crédito, gestão de recursos, seguros e previdência deixaria os bancos públicos com pouca capacidade para enfrentar esse novo ambiente competitivo.

Por tudo isso, caso haja decisão política de reduzir o papel do Estado no mercado financeiro, o mais correto seria a privatização por inteiro de pelo menos um dos grandes bancos públicos federais. Idealmente, esse movimento deveria ser precedido, dentre outras providências, por mudanças regulatórias para acabar com o direcionamento compulsório de crédito nas áreas habitacional e rural.
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Gustavo Loyola é doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do BC e sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo

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