- O Globo
Nosso complexo de vira-lata nos faz enxergar subserviência onde há gentileza, mas também leva nossa política externa a macaquear a de Trump
Para mostrar que a continência de Bolsonaro ao assessor americano John Bolton não passou de um gesto de gentileza, e não subserviência, como apregoa a oposição, tratei na coluna de ontem do complexo de vira-lata, que faz com que distorçamos o sentido de um gesto, mas também leva Eduardo Bolsonaro, deputado federal, filho do presidente eleito, a usar um boné com os dizeres “Trump 2020” numa visita oficial aos Estados Unidos. E nossa política externa a macaquear a de Trump, visto pelo futuro chanceler Ernesto Araújo como um deus político que vai salvar o Ocidente. Logo nós, latinos, que nem mesmo somos considerados ocidentais pela cultura anglo-saxã. Pois bem, encerramos esta semana na Academia Brasileira de Letras um ciclo de palestras justamente sobre como nos vemos como povo.
Fizemos um balanço do legado do movimento barroco, o que o escritor Jorge Maranhão chamou de “barroquismo brasileiro”, que se mantém enraizado na nossa cultura. Abordamos as distorções entre a teoria e a prática, o pensar e o agir, o código moral e a conduta social (o caso do cidadão que combate a corrupção, mas dá uma propina para ao guarda da esquina), a observância da lei, num país em que há leis que simplesmente não pegam.
Uma transposição cultural desastrosa do barroco, segundo a visão classicista de Jorge Maranhão. Mas pudemos entender também a criatividade da nossa cultura, compreender mais profundamente as influências musicais, as festas como o carnaval, o cinema de Glauber Rocha, o mais recente filme do acadêmico eleito Cacá Diegues, “O Grande Circo Místico”, obras por excelência barrocas.
Para o professor Mario Guerreiro, outro palestrante, o homem brasileiro herda alguns dos traços do estilo barroco: a extravagância, a profusão de curvas, a irregularidade, a incoerência. Um país de mentalidade barroca. É a velha disputa entre o homo faber e o homo ludens.
Nelson Rodrigues, nosso grande escritor marcado pela exuberância dos sentimentos, dizia que não há no mundo figura humana tão complexa, tão rica, tão potencializada como o brasileiro. O historiador Alberto da Costa e Silva, da Academia Brasileira de Letras, o maior especialista brasileiro em África, tem uma visão positiva das heranças ibéricas e africanas: “Uma troca permanente de culturas, costumes, de modos de viver, de valores, de gostos de um lado para o outro”.
O antropólogo Roberto Da Matta resume o Brasil como múltiplo e rico, o país do carnaval e do feijão com arroz, da mistura e da fantasia. Mas também do jeitinho que dribla a lei, da hierarquia velada pela cordialidade, dos valores democráticos que lutam para se instalar.
A professora Denise Maurano fez uma bela palestra sobre a influência do barroco na cultura brasileira, no que ela tem de melhor e de pior. Se a carnavalização atrasa nosso desenvolvimento como sociedade, o carnaval é uma característica cultural importante no significado além da festa.
A antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro analisa o carnaval como “festa pública e urbana por excelência, (que) conclama os cidadãos a reivindicarem territórios para a folia”. Ela nos lembra que o carnaval é também trabalho e arte e destaca que a influência ibérica da noção de tempo permitiu o surgimento de novas modalidades culturais, um tempo que não era simples adequação ao trabalho contínuo, mas de alternância entre trabalho e lazer, dança e labor.
O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim abordou o juridiquês, esse idioma parecido com o português, salteado com termos em latim, que nos acostumamos a ouvir durante a transmissão dos julgamentos pela televisão. Rebuscamento da linguagem para dar mais solenidade ao que se fala.
Como tudo comporta visões diversas, o ex-presidente do STF criticou o televisionamento dos julgamentos, demonstrando que os votos ficaram mais longos. Mas ressaltou a vantagem da transparência do processo decisório do Supremo.
A propósito, o economista-filósofo Eduardo Giannetti vira do avesso o “complexo de vira-lata”, defendendo em recente livro que não ter pedigree é um caminho civilizatório tão válido quanto os de sociedades exemplos de desenvolvimento. Afinal, pergunta Giannetti, que mal há em ser vira-lata?
O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama tornou realidade essa metáfora de Giannetti quando se declarou mutt, isto é, mestiço, ou vira-lata na acepção do nosso dia a dia.
Não sabia que Obama se acha mutt, ou mestiço. Aprendi um significado outro da palavra e cada vez mais acho Obama simpático. Grat.
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