quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O perigo da democracia direta: Editorial | O Estado de S. Paulo

Na cerimônia de sua diplomação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como presidente eleito, Jair Bolsonaro anunciou “um novo tempo”, em que “o poder popular não precisa mais de intermediação”. Referiu-se de modo específico às “novas tecnologias” - presumivelmente a internet e suas redes sociais - que “permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representantes”.

É um discurso coerente com a suposição de que a articulação dos simpatizantes de Bolsonaro nas redes sociais teria sido o fator determinante do sucesso eleitoral do deputado. É irrelevante discutir aqui se essa conclusão é procedente ou não; o que interessa é que Bolsonaro parece realmente acreditar que esse poder de mobilização virtual é expressão fiel da democracia no que ele chama de “novo tempo”.

É preocupante que o futuro presidente considere prescindível a “intermediação” para o exercício do “poder popular”. Tal análise comporta outra interpretação, também derivada das “novas tecnologias”.

O parágrafo único do artigo 1.º da Constituição diz que “todo o poder emana do povo”, que o exerce “por meio de representantes eleitos”. Portanto, a democracia brasileira é representativa, isto é, tem como princípio justamente a intermediação.

Parece claro que Bolsonaro quis se referir ao fato de que hoje, graças às redes sociais, é possível aos eleitores interagir com os políticos - e exercer pressão sobre eles - de forma direta. Mas também parece claro que Bolsonaro está flertando perigosamente com a ideia de democracia direta, em que se dispensam as instituições características do sistema representativo, sobretudo o Congresso. Na visão bolsonarista, o “poder popular” pode se confundir com a gritaria do submundo da internet, ambiente onde proliferam notícias falsas e mentiras de toda sorte e onde o diálogo é simplesmente inexistente. Ali, tem poder quem grita em letras maiúsculas.

Bolsonaro reitera, assim, seu repúdio à política tradicional - embora ele mesmo seja um parlamentar com quase três décadas de Câmara. Deixa claro, antes mesmo de tomar posse, que considera muito mais democrático o burburinho anônimo e irresponsável das redes sociais do que a discussão formal da política e da administração no Congresso. Subjacente a seu discurso está a noção de que nenhum político eleito pelos meios tradicionais representa de fato os anseios populares e que só a mobilização de ruidosa militância, tal como aconteceu nas últimas eleições, é entendida como manifestação da vontade dos cidadãos, à qual todos devem se submeter.

Esse raciocínio em nada difere daquele que defende o recurso sistemático a consultas populares como a única forma realmente democrática de expressão da opinião dos eleitores. A Constituição prevê essas consultas, mas os referendos e plebiscitos só podem ser convocados pelo Congresso, isto é, por representantes eleitos pelo povo, e em situações específicas. A democracia direta, sem intermediários, dispensa a busca de consenso - leva tudo quem tem mais votos -, podendo descambar na ditadura da maioria. Foi assim, legitimando suas arbitrariedades por meio de plebiscitos, que o chavismo construiu o desastre que se abate sobre a Venezuela. Se a intenção é evitar que o Brasil seja “a nova Venezuela”, como prometeu Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito, o primeiro passo deveria ser respeitar a democracia representativa.

Como bem lembrou a presidente do TSE, ministra Rosa Weber, numa oportuna resposta às palavras do futuro chefe do Executivo, “em uma democracia (...), maioria e minoria, como protagonistas relevantes do processo decisório, hão de conviver sob a égide dos mecanismos constitucionais destinados à promoção do amplo debate”. E arrematou: “A democracia, não nos esqueçamos, repele a noção autoritária do pensamento único”.

Se é claro que os brasileiros expressaram nas urnas seu repúdio ao lulopetismo e à sua vocação autoritária, não é menos claro que o resultado das eleições de outubro passado não pode ser entendido como aval para a sujeição do País aos que se julgam maioria.

Como disse a ministra Rosa Weber, a essência da democracia é a “convivência de opostos”, o que demanda alto grau de sofisticação política de quem ocupa os mais altos postos da República, a começar pelo presidente.

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