sábado, 29 de dezembro de 2018

Rodrigo Zeidan: Um governo de ofuscação

- Folha de S. Paulo

A estratégia é bater em coisas irrelevantes, ignorando o que realmente importa

A ciência econômica passa por uma revolução com base em bancos de dados detalhados e técnicas sofisticadas. Um dos exemplos vem de Girija Borker, que estima quanto as mulheres na Índia estariam dispostas a pagar para se livrar de assédio e violência sexuais.

Girija usa o Google Maps, dados obtidos via financiamento coletivo e um robusto modelo teórico e conclui que elas prefeririam estudar numa faculdade abaixo da média, em vez de em uma entre as 20% melhores, só pelo motivo de o caminho ser mais seguro (por um desvio-padrão). As indianas também se disporiam a pagar quase US$ 300 (R$ 1.200) ao ano, o dobro da anuidade média no país, para andar com pouco mais de segurança.

Temos mais fontes para entender o mundo atual. Petra Persson e Maya Rossin-Slater mostram que o impacto do estresse na gravidez sobre os filhos pode ser permanente. Adultos de mães que tiveram uma morte na família durante a gravidez têm mais transtornos que os de famílias cuja morte aconteceu logo depois do nascimento.

Com coautores, Nathaniel Hendren revela que negros têm menor mobilidade social que brancos em 99% das cidades americanas, e Alex Bell evidencia que desigualdade também é norma no quesito invenções.

Analisando patentes de 1,2 milhão de inventores americanos, filhos dos 1% mais ricos têm dez vezes mais chance de obter uma patente que os de famílias de classe média ou abaixo.

Tem coisa boa saindo do forno para melhorar políticas. Minhas contribuições, eu comento na próxima coluna.

É época de previsões. O novo governo, com boa vontade, vem sem nenhuma substância. Assim como o de Trump e dos populistas europeus, teremos um governo de ofuscação, em vez de coalizão. A estratégia é simples: bater em coisas irrelevantes, ignorando o que realmente importa.

Nas últimas semanas, o presidente eleito criticou a Lei Rouanet e a vida "insuportável na França" e disse que vai acabar com "caprichos" dos fiscais do Ibama. O total de renúncia fiscal via Lei Rouanet é de 0,02% do PIB, o percentual de estrangeiros no Brasil é de 0,4% da população, e, se os fiscais do Ibama tivessem realmente poder, o desmatamento na Amazônia não teria aumentado 14%, sendo o maior desde 2008.

Pior é que a tática tem dado certo. Victor Orbán esbraveja na sua cruzada fascista, enquanto a popularidade de Trump está em cerca de 50%, mesmo ele paralisando o governo para construir um muro que não terá efeito prático.

Em Terra Papagalis, temos detalhes sobre a reforma da Previdência? Necas. Sobre combate à desigualdade, uma das piores do planeta? Nadica.

Em 2019, a sociedade continuará alvoroçada por declarações cada vez mais contundentes; só que irrelevantes. Pouca coisa vai sair do papel. Pior é não ver saída para isso. Afinal, como evitar fazer eco para os absurdos que vêm da boca do presidente? A imprensa reverbera cada bravata do Trump. Como fazer diferente?

"Aja de forma a usar sua humanidade, sua ou dos outros, como fim e não somente como meio." Essa frase do filósofo alemão Immanuel Kant é parte de uma longa tradição da filosofia moral. Se há uma promessa de final de ano que refaço, sempre é essa: nunca tratar as pessoas como meio de conseguir algo.
Kant mantinha uma rotina rigorosa, quase nunca saiu da sua cidadezinha, e sua filosofia era inflexível. Provavelmente era um chato. Mas nos deixou um alicerce de racionalidade intransitiva com o objetivo de melhorar o mundo.
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Rodrigo Zeidan, professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

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