segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Cacá Diegues: A honra de viver

- O Globo

De que socialismo nosso novo presidente prometeu nos libertar, em seu discurso de posse no parlatório do Planalto?

Na minha juventude, éramos todos socialistas, queríamos que os homens fossem mais iguais e ninguém passasse fome. Podia até ser uma utopia, mas era um projeto sincero e generoso para a humanidade. Quem fosse inteligente e tivesse coração não podia deixar de ter ideias socialistas, se opondo à irracionalidade desumana do capitalismo. De acordo com nossa formação e crenças pessoais, o ideário podia vir recheado de princípios cristãos ou marxistas, conforme cada momento e a fé de cada um. Foi o socialismo real em alguns países, com sua violência e seu autoritarismo, que começou a nos afastar desse sonho.

Muitos saíram então em busca de uma alternativa à selvageria capitalista nos regimes de welfare state, o bem-estar social e democrático que bastaria às nossas pretensões humanistas. O exemplo estava na Escandinávia e eventualmente em outros países europeus, como a Inglaterra. Até que o vitorioso furacão individualista de Margaret Thatcher conquistasse o país e mais da metade do mundo. Inclusive os Estados Unidos de Ronald Reagan, recém empossado como presidente. Me lembro sempre da célebre e cruel declaração da primeira-ministra britânica, no início de seu mandato: “O socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”. Para Thatcher, o que era chamado de dinheiro público não existia; o que existia era apenas “o dinheiro de quem paga impostos”.

Com o fim da ditadura no Brasil e o início de nossa redemocratização, procuramos, por aqui mesmo, nossa remissão das dores do capitalismo e da pobreza subdesenvolvida. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) parecia uma modernização do socialismo democrático para os trópicos. E o Partido dos Trabalhadores (PT) deixava de ser uma agremiação sindical de resistência para se tornar um partido popular. Eles se alternaram no poder, durante décadas de nossa democracia adolescente, sem nunca atender ao que eles próprios anunciavam. Nós bem que tentamos acreditar neles e em seus líderes mais expressivos.

Agora vem o novo presidente, eleito em proclamada oposição a tudo que esses partidos representaram no poder, dizer que vai libertar o Brasil do socialismo. Que Brasil? Que socialismo?

A desigualdade em nosso país é cada vez mais brutal e vergonhosa. Ela não ficou estacionada em números escandalosos, anteriores ao PSDB, ao PT e ao MDB, mas se agravou nesses últimos anos, mesmo que certos aparentes sucessos governamentais tenham dado outra impressão ao país. Segundo relatório da Oxfam Brasil, revelado pelo presidente de seu Conselho Deliberativo, o 1% mais rico de nossa população detém cerca de 25% da renda nacional. Os 5% mais ricos, por sua vez, ganham o mesmo que a soma de todos os outros 95%. E 165 milhões de brasileiros, mais de 75% de nossa população, vivem com menos de dois salários mínimos mensais. Tem mais: 0,1% da população concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74% dela. Em outro cálculo estatístico sobre a nossa desigualdade, a Oxfam demonstra que os mais pobres morrem, em geral, com idade inferior a 60 anos; enquanto os mais ricos sobrevivem, em média, até os 80 anos. E por aí vai.

Não me rio da ministra que viu Jesus Cristo trepando na goiabeira, embora ache ridícula essa história de que meninas só vestem rosa e meninos, azul. Assim como não vejo por que rir do cavalo que faz baixar seu santo no terreiro. Ou subestimar a capacidade de fazer milagres de João de Deus, o estuprador. Acredito em toda crença ou em toda fantasia humana que não faça mal a ninguém. Tudo isso só nos traz mais esperança no que pode acontecer conosco e no mundo. Mas esses números são a prova de nossos descuido, despreparo e incompetência. Sobretudo de nossa indiferença e desinteresse pelos outros.

Ninguém precisa libertar o Brasil do socialismo, porque no Brasil nunca houve socialismo nenhum, apenas a demagogia sempre vencida pela desigualdade real e crescente. É essa que precisa ser extirpada, a qualquer preço, por qualquer que seja o partido no poder, por qualquer que seja seu programa de governo. É preciso viver a existência do outro, justificar o mote generoso de nosso grande jurista Dario de Almeida Magalhães: “Viver é uma honra”.

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