segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Cacá Diegues: Um Oscar novo

- O Globo

A inteligência e o entretenimento se somam em Hollywood para formalizar o reconhecimento de uma nova cultura

Há certos assuntos que a humanidade vive e discute há muito tempo. A migração, por exemplo, não é um tema de prática e teoria novas, embora, em anos recentes, tenha se tornado referência nos debates sobre o presente e o futuro do ser humano no planeta. A migração está na origem do reino do ser humano sobre a Terra, se levarmos em conta os movimentos de populações inteiras pelo globo afora, em todos os tempos. O homo sapiens surgiu em algum lugar da África e se deslocou para outros continentes até chegar à América, sua mais recente e grande migração. O ser humano, seja por que motivo for, nunca ficou parado para sempre num mesmo pedaço de terra.

Hoje, repetindo o passado, assistimos a um movimento trágico de populações africanas que se deslocam de suas origens, fugindo da fome e da guerra, duas formas brutais de extermínio humano, rumo sobretudo à Europa, a esperança mais próxima. Em alguns países alvos desses movimentos, como a Alemanha, já se organizaram as formas de recepção e acolhimento desses povos, de acordo com as leis locais e as características socioeconômicas de cada um. Em outros, como alguns centro-europeus, o horror ao migrante se revela em sinais brutais de racismo e xenofobia, de recusa sistemática dos necessitados, que acabam desajustados nas fronteiras ou no fundo sinistro do Mediterrâneo.

Em países mais longínquos, ondas migratórias se deram desde muito tempo atrás, fazendo parte da própria formação da nação, mesmo que setores políticos reacionários não as desejem e tentem negá-las. Como nos Estados Unidos ou no Brasil. No caso americano, o Oscar deste ano nos revela surpreendente superação de preconceitos multiétnicos.

Entre as obras que disputam as diferentes categorias nesse 91º Oscar, fora os específicos filmes falados em outra língua que não o inglês, há trabalhos e diretores vindos de México, Grécia, Alemanha, Polônia, Suécia, Dinamarca, além de cinco cineastas negros, etnia que nunca se deu bem nessas premiações, sempre esquecida graças aos preconceitos racial, social e cultural. Esses cineastas negros são herdeiros dos “migrantes compulsórios”, trazidos da África para serem escravos no Novo Mundo branco de ascendência europeia. Tornados cidadãos americanos na segunda metade do século XIX, durante a presidência de Abraham Lincoln, só no século seguinte, a partir do governo de John F. Kennedy, em 1962, eles conquistaram com muito sofrimento seus direitos civis e passaram a ser obrigatoriamente tratados como qualquer outro dos diferentes migrantes que construíram a nação.

O Oscar é um prêmio corporativo, seus vencedores são escolhidos pelos profissionais de Hollywood, executivos, técnicos e talentos que fazem a grandeza do cinema americano, para o bem ou para o mal. Essa tendência atual, aparentemente consolidada, de premiar o que se julga de qualidade, sem restrições de preconceitos, não é um esforço institucional, nem uma política de Estado (mesmo porque não seria essa a política do atual presidente Donald Trump). Mas a confirmação de um desejo e de um projeto em que a inteligência e o entretenimento se somam para formalizar o reconhecimento de uma nova cultura que seja o resultado de todas as influências que formaram a complexidade do país.

Claro, falta ainda fazer justiça às mulheres atrás das câmeras. Embora algumas produtoras estejam indicadas pelos filmes que produziram, as listas dos indicados não incluem diretoras ou técnicas de qualquer natureza. Mas não se pode subestimar uma premiação que indica, entre os oito melhores filmes, dois dirigidos por estrangeiros (“A favorita”, do grego Yorgos Lanthimos, e “Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón) e dois por cineastas negros (“Infiltrado na Klan”, de Spike Lee, e “Pantera Negra”, de Ryan Coogler). Se formos analisar essa tendência pela indicação dos candidatos ao Oscar de melhor diretor, veremos ainda que, dos cinco indicados, três são estrangeiros (Lanthimos, Cuarón e o polonês Pawel Pawlikowski), um é afro-americano (Lee) e só o quinto, Adam Mckay, nascido na Filadélfia, é certamente um autêntico sucessor dos migrantes fundadores do Mayflower.

Tão significativa quanto a extensão do reconhecimento a todos os filhos de um país formado por tantos povos, como os Estados Unidos, é também a natureza cinematográfica dos principais filmes indicados. Do blockbuster afro-americano de “Pantera Negra” à dramédia politizada de “Green Book”, do estranhamento agressivo de “A favorita” ao politicamente explosivo de “Vice”, do romance bélico de “Guerra Fria” ao épico documental de “Roma”, esse Oscar decreta a superação do realismo naturalista que dominou os últimos festivais internacionais com filmes bem intencionados sobre fait divers políticos, cheios de piedade social e conformismo estilístico, apontando agora para o futuro do cinema.

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