segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

*Denis Lerrer Rosenfield: O candidato e o governante

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro não pode ficar preso a discursos de campanha, exige-se dele coragem de decidir

O discurso do presidente Jair Bolsonaro em sua posse foi coerente com suas posturas de candidato. Retomou suas teses centrais, formuladas no calor da disputa eleitoral, como se, agora, pudessem simplesmente servir como orientações de governo. Uma coisa é a campanha, com suas necessidades retóricas, voltadas para o convencimento do cidadão, outra, muito diferente, reside nas ideias concretas de governar.

O candidato conseguiu articular em torno de si tanto sentimentos difusos e setoriais da sociedade quanto posturas focadas em dizer não ao petismo e ao politicamente correto, identificado com concepções de esquerda. O combate ao PT foi a sua grande bandeira, fazendo ver à opinião pública a sua responsabilidade pelo descalabro fiscal, pelo desemprego, pela ideologização da educação, pela criminalidade desenfreada e pela corrupção generalizada.

Foi, nesse sentido, imensamente favorecido pela escolha eleitoral petista, que preferiu, ao arrepio da verdade, tornar Lula um perseguido político, quando não passa de um criminoso já julgado e condenado em várias instâncias. Em vez de reconhecer a corrupção em seus governos, optou por se esconder, não assumindo a própria culpa. Poderia ter-se aberto um novo caminho!

Tampouco foi de valia permanecer no discurso inverossímil do “golpe”, quando a Constituição foi fielmente obedecida, até mesmo com o beneplácito de ministros do Supremo que haviam sido escolhidos pelos ex-presidentes Lula e Dilma. A corroborar sua ausência de visão, deu-se ao luxo de não comparecer à posse do novo presidente, numa atitude de não reconhecimento do resultado das eleições e das regras mesmas do jogo democrático. Pode-se dizer que o PT facilitou a vida do candidato Bolsonaro. Este, certamente, agradece!

Acontece que o antipetismo, ao aglutinar diferentes formas de oposição e de descontentamento, terminou por agrupar interesses os mais diversos, alguns abertamente contraditórios entre si. De modo geral, pode-se falar de conservadores e liberais, defensores da ordem e da segurança, partidários da livre-iniciativa e de uma economia concorrencial de mercado, e assim por diante. Conservadores nos costumes e na educação, por exemplo, sinalizam para os valores da família, da religião e da pátria, podendo ou não ser favoráveis a uma economia de livre mercado. Liberais na economia podem ser radicalmente avessos aos conservadores, advogando por uma liberdade generalizada.

A base eleitoral do agora presidente Bolsonaro conseguiu reunir essas diferentes posições, o que fez seu discurso de posse procurar dar satisfação a todas. Em certo sentido, pode-se dizer que o caráter abstrato e genérico de suas formulações foi consoante com os diferentes interesses que abriga em seu seio. Ao procurar atender todos, pouco foi dito sobre o modo concreto desse atendimento, o que certamente agradará a alguns e desagradará a outros.

A sociedade brasileira reconhece-se em seu novo governante, cuja vitória não deixa margem nenhuma a dúvidas. Cansou-se do palavreado político em geral, sobretudo quando constata, em seu cotidiano, uma criminalidade galopante. Pessoas querem simplesmente caminhar tranquilas pelas ruas, sem ser assaltadas ou assassinadas. Para elas, bandidos devem estar na prisão e as leis devem ser implacavelmente aplicadas. O reconhecimento nacional da Lava Jato é uma prova disso. Não tolera o desemprego, fruto de uma economia emperrada e atravessada por interesses corporativistas, embora a reversão da curva já tenha sido empreendida pelo governo Temer.

O povo quer um Estado que funcione, atendendo os mais carentes e a classe média em geral com serviços de saúde e educação consoantes com os impostos arrecadados. Muito se paga ao Estado e pouco se recebe dele em retribuição. Em troca, assiste ao deplorável espetáculo de estamentos estatais usufruindo privilégios e advogando em causa própria por aumentos salariais, quando outros, na base, nada recebem. Pode-se dizer que a sociedade se cansou dos privilégios usufruídos por uma minoria que desconhece o interesse geral. Bolsonaro soube muito bem capitalizar para si esse sentimento generalizado.

Contudo a fase da expressão política popular dá agora lugar à de governar, fazer opções, desagradar e realizar a necessária transformação do País. Governar não é agir numa reunião aleatória de interesses divergentes, mas ver além deles em benefício de um todo mais abrangente, o Brasil. O atendimento de diferentes interesses particulares não significa resolver os problemas prementes do País. As virtudes de um candidato não coincidem necessariamente com as virtudes de um governante ou de um estadista.

As últimas décadas foram, sobretudo, marcadas por um forte viés distributivista, como se a função do Estado fosse simplesmente redistribuir a riqueza segundo os anseios particulares dos governantes de plantão. A questão da produção de riquezas foi, em boa medida, relegada, salvo, nestes últimos anos, na política de responsabilidade fiscal do governo Temer.

O novo presidente, por sua vez, deverá contrapor-se a essa tendência distributivista da sociedade brasileira, o que certamente terminará por acarretar o descontentamento dos que se sentirem prejudicados. Deverá ver o Brasil do amanhã, e não somente o das urgências do dia presente. Dele será exigida a coragem de decidir, de mudar o Brasil.

Para tanto não poderá ficar preso a seus discursos de campanha. Valores religiosos não são de valia para a condução da economia, por mais que tenham validade em outras esferas da vida humana. O País exige o que o próprio presidente chamou de “reformas estruturantes”, dentre as quais a mais importante é a reforma da Previdência. Sem ela o Brasil soçobrará. Com ela a Bandeira Nacional não voltará a ser vermelha!

*Professor de filosofia na UFRGS

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