quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Fernando Pessoa: Carnaval

A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira

A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões atrás da alegria
Duma plebe farsante e copiosa

Cada momento é um carnaval imenso,
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisso maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso

De mais Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver onde é que tem o pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça

Automóveis, veículos,
As ruas cheias,
Fitas de cinema correndo sempre
E nunca tendo um sentido preciso.

Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,
Cambaleio nas minhas sensações,
Sinto uma súbita falta de corrimões
No pleno dia da cidade

Uma pândega esta existência toda
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o crente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda

E contudo eu estou como ninguém
De amoroso acordo com isto tudo
Não encontro em mim, quando me estudo,
Diferença entre mim e isto que tem

Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa
Do livro: "Obras Completas", Edições Ática, 1970, Portugal

Um comentário:

  1. Eu sempre acho que Fernando Pessoa viveu em outros tempos,mas é tão contemporâneo,''carnaval,automóveis e fitas de cinema''.

    ResponderExcluir