quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Guinada para o retrocesso: Editorial | O Estado de S. Paulo

O sombrio ideário que até agora se afigurava como um prenúncio de retrocesso na política externa brasileira começou a se concretizar em medidas do governo do presidente Jair Bolsonaro. A menos que haja profunda reflexão no Palácio do Planalto e no Itamaraty sobre os seus efeitos nocivos, a tal “guinada” liderada pelo chanceler Ernesto Araújo – que bem poderia ser chamada de “cruzada” – tem potencial para acabar de vez com o que ainda resta da boa reputação do Brasil no mundo civilizado.

A Organização das Nações Unidas (ONU) foi comunicada oficialmente pelo governo brasileiro, na terça-feira passada, de que o País está fora do Pacto Global pela Imigração, ao qual o Brasil havia aderido no dia 10 de dezembro do ano passado. A saída do pacto, por si só muito ruim para o País e, principalmente, para os cerca de 3 milhões de brasileiros que vivem no exterior – mais que o dobro do número de imigrantes estrangeiros que vivem aqui –, é ainda pior pela razão alegada pelo governo: o pacto violaria a soberania nacional.

“A defesa da soberania nacional foi uma das bandeiras de nossa campanha e será uma prioridade do nosso governo. Os brasileiros e os imigrantes que aqui vivem estarão mais seguros com as regras que definiremos por conta própria, sem pressão do exterior”, escreveu o presidente Jair Bolsonaro no Twitter.

Em primeiro lugar, caso o presidente da República estivesse tão preocupado com a soberania nacional não teria sequer aventado a possibilidade de ceder uma porção de nosso território para uma base militar dos Estados Unidos no País, como o fez em entrevista ao SBT. Em segundo lugar, o chamado Pacto de Marrakesh não viola a soberania nacional. Aliás, diga-se que a decisão de aderir ao pacto foi um ato soberano do Estado brasileiro, então representado pelo ex-chanceler Aloysio Nunes.

O Pacto de Marrakesh foi aprovado por 160 das 195 nações que fazem parte da ONU. No início de dezembro, o ex-chanceler Aloysio Nunes foi enfático ao defender a adesão do Brasil. “Eu o aprovei porque ele simplesmente contém recomendações de cooperação internacional para combater a migração irregular e conferir tratamento digno aos migrantes, entre os quais cerca de 3 milhões de brasileiros que vivem no exterior”, disse o ex-ministro das Relações Exteriores. É exatamente disso que se trata. O título integral do acordo fala por si só: Pacto Global da ONU para Migração Segura, Ordenada e Regular.

Ao contrário do que dizem seus críticos, o pacto não propugna a abertura irrestrita de todas as fronteiras das nações signatárias a todo e qualquer imigrante. O documento é taxativo ao afirmar o “direito soberano dos Estados de determinar suas próprias políticas de migração e suas prerrogativas para governar a migração dentro de sua jurisdição, em conformidade com as normas do direito internacional”. Vale dizer, o Pacto de Marrakesh é um conjunto de propostas para que as nações lidem melhor com o aumento do fluxo migratório que tem sido observado em função de crises econômicas, guerras, perseguições étnicas e religiosas, etc.

O impressionante número de nações subscritoras, por sua vez, também é eloquente sinal da oportunidade de um acordo que se presta a lidar com um problema gravíssimo que, sim, é uma questão que deve ser enfrentada como um desafio global, e não um problema restrito a determinados países, como crê o chanceler Ernesto Araújo.

O pacto se coaduna com os princípios da Constituição e, em especial, com a Lei n.° 13.445/2017, a Lei da Migração. Ademais, os princípios e garantias que regem a política migratória brasileira estão de acordo com seus termos. Ou seja, negar o acordo firmado soberanamente pelo Brasil, para além do embaraço, é o mesmo que negar o que determina uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República.

Somos uma Nação forjada pelo trabalho incansável de brasileiros e estrangeiros que aqui convivem em harmonia poucas vezes vista em outros países. Aqui prevalece o espírito de tolerância. Não é republicano encabrestar uma história secular de acolhimento e multiculturalismo em função do viés ideológico do governo de turno.

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