- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Em recente artigo, o médico Drauzio Varella tratou do charlatanismo e da possibilidade ou não de milagres em matéria de saúde. Foi motivado pelas notícias sobre um suposto curador acusado por mulheres de terem sido abusadas quando em busca de alguma cura.
Num eventual elenco das personagens do ramo, sempre se suspeita de que há charlatães entre eles. Mas, comparativamente, há muitos outros casos de curadores e benzedores eficazes, de pequena popularidade, homens e mulheres que, na crença popular, com rezas e meizinhas, promovem alívio em estados de incerteza, dor e sofrimento.
Os exageros se disseminaram quando curadores passaram a ser procurados por pessoas de extração social e cultural diversa daquela em que essas práticas curativas são tradicionais. Porque essas pessoas "fora do lugar" tendem a embaralhar concepções de cura diferentes daquelas de sua socialização de origem e até com elas "incompatíveis".
Hoje, no Brasil, é muito comum que pessoas que procuram o médico, por sim ou por não, levadas pela mesma queixa, vão também ao curandeiro ou ao benzedor, a centros espíritas ou a sessões de cura de igrejas evangélicas. São os brasileiros da modernidade inconclusa. Nessa concepção acumulativa, característica da classe média da sociedade de consumo, o pressuposto é o de que os benefícios curativos e mágicos quantitativamente se somam aos obtidos através da medicina científica. Somos culturalmente duplos.
Quando o tratamento recomendado pelo médico produz efeito, quase sempre a cura é atribuída a benzimentos e orações. Para muitos, a medicina científica é uma medicina incompleta porque lhe faltaria o componente da fé. Nisso, a sociedade brasileira é apenas pseudomoderna. Saltamos do arcaico para o pós-moderno, como sugere o antropólogo Néstor García Canclini, sem passar pelo propriamente moderno. Arcaísmos nos fazem atores de uma pós-modernidade de colagem.
Nossa tradição popular de doença e cura é de várias origens. Além de ser mescla de crenças do cristianismo colonial e de concepções indígenas e africanas de tratamento e saúde. Nessas crenças, não há milagres. Há curas que as pessoas chamam de milagres porque as confrontam com a descrença no "não racional" própria do campo médico. A apologia do milagre quase sempre resulta da cura de enfermidade de alguém já "desenganado pelos médicos".
O milagre, portanto, é a cura decorrente de procedimentos curativos residuais em relação à ciência, sobreviventes da medicina popular e tradicional, mas subjetivamente eficazes. Portanto, a concepção de milagre não está em disputa com a medicina oficialmente reconhecida. A medicina é que disputa superioridade com as crenças populares. E quase sempre o faz de maneira autoritária e pouco pedagógica.
Uma coisa que poucos levam em conta é que, nas concepções populares de doença, cada enfermidade tem o seu "especialista". O homem comum sabe disso. Ninguém vai ao curandeiro quando tem sintomas de doenças cujo diagnóstico e cuja denominação são próprios da medicina científica. Ninguém vai ao médico para afastar mau-olhado, que é do âmbito da medicina mágica.
Há quem conceba o milagre como um raio que cai na cabeça de alguém e faz um coxo andar ou sair dali direto para a avenida Paulista, participar da São Silvestre e vencer a prova. Esse é um milagre improvável. Milagre depende de fé e de acontecimentos razoáveis. Na cultura popular, o absurdo não é milagre. Milagre é o surpreendente, o inesperado. Não raro o imerecido, sempre fator de conversões religiosas ou recompensa por elas.
Milagre é apenas milagre. Sua ocorrência passa pela cultura da milagrosidade, dos valores que escapam da prisão retilínea do racional. Pode ser cientificamente explicado pelas ciências humanas. Nunca soube de milagre em consultório médico ou hospital. Mas já soube de milagres em casas rústicas da roça, em casas simples de bairros pobres, os lugares do desamparo social.
Boa parte das doenças classificadas pela medicina popular e das curas respectivas está diretamente relacionada com a crise, cada vez maior, da sociabilidade comunitária e familiar.
A disseminação do individualismo decorrente da sociabilidade da compra e do consumo, que coisificou as relações humanas, baseando-as no pressuposto da autossuficiência, criou o desamparo de uma grande solidão que enfermiza suas vítimas. Os milagres quase sempre estão associados à suposição do reencontro com a comunidade perdida, à reintegração em alguma modalidade de referência comunitária e de pertencimento. Não é casual que em algumas orientações religiosas desse tipo, os valores de aglutinação sejam de tipo profético, investidos do atributo de missão em relação ao outro.
*José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto), dentre outros.
Ponto de vista sem preconceito.
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