sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

*José Eduardo Faria: O capitão reformado e a compreensão da política

- O Estado de S.Paulo

Quanto mais as redes disseminam opiniões e informações, mais confundem, desorientam

Ao afirmar que poder popular não requer intermediários, pois está organizado horizontalmente e opera em tempo real graças à internet, o novo presidente da República apresentou, finalmente, uma ideia política. Ele pode não ter sido claro e preciso, mas ao menos tocou numa questão importante: num período de incertezas, em que proliferam movimentos de protesto contra a incapacidade das instituições de gerir a vida econômica e social do País, até que ponto a política é compreensível para os eleitores?

Na complexidade da sociedade contemporânea, em cujo âmbito distintos atores agem crescentemente em esferas cada vez mais globais, as práticas políticas mudaram de forma, caráter e alcance. Com isso puseram em novos termos o exercício da cidadania, não pela falta de informações, mas pela abundância de mensagens. Transmitidas pelas redes sociais, o que facilita a difusão de todo tipo de opiniões sem nenhum critério ou hierarquização, essa abundância de informações é problemática, pois tende a desviar o foco dos temas fundamentais, provocando mais confusão do que compreensão. Quanto mais disseminam informações e opiniões, mais as redes sociais confundem e desorientam.

Contudo a sociedade não se tornou mais complexa apenas por sua dinâmica natural. As novas formas de ação política propiciadas por instrumentos digitais também ajudaram a aumentar o nível de complexidade social. As novas práticas políticas questionam a autoridade estabelecida, diversificam as possibilidades de ação e ampliam o campo do que é politicamente discutível. E ao lado dos mecanismos tradicionais de representação, como partidos e sindicatos, que já não dão conta da complexidade socioeconômica, multiplicaram-se ONGs que se mobilizam por meio de redes, o que lhes permite ultrapassar fronteiras territoriais, corroendo os espaços delimitados que serviam de referência na época em que tudo girava em torno do Estado-nação.

Decorre daí o sentido da indagação acima: a política é compreensível para os eleitores? Nesse cenário, a política tradicional tem se revelado incapaz de mostrar ao eleitorado o conjunto da sociedade e de seus atores, lógicas e discursos. Quando uma crise política eclode, é porque as práticas políticas não conseguem cumprir um de seus papéis básicos – o de tornar a sociedade visível a si mesma, facilitando sua inteligibilidade pelos cidadãos que a integram. Diante dessa incapacidade de compreender o que determina sua vida, os eleitores tendem a ficar confusos, deixando-se levar por indignações não construtivas e metáforas mobilizadoras. É possível recuperar a legitimidade estabelecida pela democracia representativa tradicional? Há alternativas a ela? Questões como essas têm sido discutidas, entre outros, pelo filósofo espanhol Daniel Innerarity, hoje em evidência na Europa. Ele tem uma visão crítica das redes sociais.

A seu ver, elas manipulam consumidores passivos de informações, não conseguem servir de instrumento para a articulação democrática da complexidade institucional. Mas vê com otimismo a possibilidade de se ampliar o processo democrático, com base na ideia do que chama de “sociedades inteligentes”, que remetem à imagem de organizações capazes de aprender, analisar e decidir coletivamente, abrindo-se a novos temas, aumentando o número de protagonistas e tornando viáveis formas de atuação que transcendam a relação vertical entre líderes e liderados. À medida que a complexidade de um sistema democrático aumenta, afirma, a tendência é que cresça o número de recursos cognitivos de que os eleitores necessitam, abrindo caminho para o fortalecimento de uma cultura política mais reflexiva e sofisticada.

Sociedades efetivamente democráticas são capazes de aprender por meio de dispositivos institucionais de inteligência coletiva e de reflexão sobre experiências de aprendizagem comunitária. A democracia é inviável quando não se consegue compreendê-la. Se os eleitores não forem capazes de entender o que está em jogo, a liberdade de opinião é inócua. Nesse caso, as redes sociais levam os eleitores a satisfazer seus desejos imediatos, sem valorizar horizontes de responsabilidade e noções elementares de direito. As sociedades que se polarizam em torno de antagonismos maniqueístas não forjam uma democracia sólida. “Uma opinião pública que não entenda a política e não seja capaz de julgá-la pode ser facilmente instrumentalizada ou enviar sinais equivocados para o sistema político”, diz Innerarity.

Essa confusão explica comportamentos políticos regressivos, como as simplificações populistas e a inclinação pelo autoritarismo – fatores que têm sido responsáveis pela decomposição das bases políticas de grupos de centro-direita ou de centro-esquerda. Nessa perspectiva, a política é reduzida a um teatro, já que suas operações têm apenas valor de entretenimento, dada a preferência dos eleitores pelos escândalos e pelas mensagens desqualificadoras de políticos em vez do intercâmbio de argumentos e de propostas, afirma Innerarity em seu último livro, Compreender la democracia. “O escândalo limitado ao comportamento de alguns poucos despolitiza o juízo acerca da sociedade em que vivemos. São esses esquematismos quase inevitáveis que explicam o fato de que os eleitores não votam com base de acordo com programas políticos, mas sim com base na personalidade do candidato, deixando-se levar facilmente por estereótipos, prejulgamentos e categorizações que levam o que é complexo por princípio ao nível do que lhes é familiar”, conclui.

Innerarity trata das transformações da política no contexto europeu. Seus argumentos, contudo, podem ser aplicados à política brasileira. Eles ajudam a entender como foi possível a ascensão ao poder de um capitão reformado sem preparo, defensor de poder popular sem intermediários, e os riscos que isso implica para a democracia.

*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas

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