quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Maria Cristina Fernandes: O clone que abrilhantou o show de Trump

- Valor Econômico

Subalternidade já causa danos à imagem do Brasil

É preciso acreditar que Fabrício Queiroz vai pagar a conta do hospital com a venda de carros usados para ter enxergado unicamente um elogio na declaração feita esta semana por Donald Trump sobre o presidente Jair Bolsonaro. A íntegra do discurso de 58 minutos do presidente americano na convenção anual de uma centenária federação do agronegócio em Nova Orleans deixa poucas dúvidas sobre suas intenções.

Nos primeiros 35 minutos de seu discurso, Trump dedicou-se a falar do muro que pretende construir na fronteira com o México. Num dos momentos mais aplaudidos, disse que o construção não dificultaria a contratação de migrantes para a agricultura - "Vocês precisam dessa gente". Nos sete minutos seguintes dedicou-se aos feitos na redução de impostos e na desregulamentação do setor.

Foi aos 43 minutos que começou a falar da concorrência no agronegócio mundial. Disse que o país assistia ao declínio da participação americana. "O que estou interessado é na América primeiro", disse, fazendo uso de seu bordão de campanha. O presidente americano citou que a Argentina, pela primeira vez em um quarto de século, abriu-se às exportações americanas de suínos - "Quando eles me pedem algo, digo, ok, mas antes me abram mercado" - e que o Japão passou a comprar as batatas de seu país.

A menção ao Brasil veio aos 47 minutos do discurso: "Temos, pela primeira vez desde 2003, a exportação de carne americana exportada para o Brasil". Deu uma parada e acrescentou o comentário: "Eles têm um novo grande líder. Dizem que ele é o Donald Trump da América do Sul". Nesse momento, com absoluto domínio de palco, perguntou, em tom de ironia, à plateia: "Vocês acreditam nisso?". Arrancou uma das mais prolongadas salva de palmas do show e foi em frente: "E ele está feliz com isso. Se não estivesse eu não gostaria do país, mas eu gosto dele [Bolsonaro]".

Depois da menção ao Brasil, Trump citou a abertura do mercado chinês, também à carne americana, "pela primeira vez em anos". E se disse disposto a reagir ao que chamou de 'roubo' de tecnologia de sementes desenvolvida em seu país. O discurso laudatório aos produtores rurais americanos terminou com uma ovação: "A grande colheita ainda está por vir. A agricultura americana será maior do que nunca".


Foi a primeira vez, em décadas, que um presidente americano compareceu à convenção anual da mais tradicional associação de lobby do agronegócio do país (Farm Bureau). Precisava conter as insatisfações do setor com o bloqueio orçamentário nem que para isso precise radicalizar a retórica da guerra comercial.

Se Trump elogiou algo no Brasil foi a subalternidade. Preza o desejo do presidente Jair Bolsonaro de replicá-lo porque assim acredita fazer valer os interesses de seu país. Na visão externada pelo presidente americano, o colega brasileiro está feliz por se achar parecido com ele, o que deve ser motivo de dúvida mas é a única razão pela qual ele gosta do Brasil.

Foi como dissesse, ok, mr. Bolsonaro o senhor deve me imitar não porque um dia vá conseguir ser um clone, mas porque é a única condição de eu levar seu país em consideração. Tudo isso num evento do setor em que o Brasil tem sua mais competitiva presença na economia mundial. É mais fácil acreditar nos fastos rendimentos do negociante de Passats e Belinas do que na percepção de que o discurso do presidente americano vai ao encontro dos interesses nacionais.

Bolsonaro não arrancou tamanha deferência de uma hora para outra. Quarenta e seis dias se passaram entre o discurso e a continência prestada por Bolsonaro a John Bolton, quando o conselheiro de segurança nacional do governo americano o visitou em sua casa no Rio. Integrante da Associação Nacional do Rifle, mais poderoso lobby pró-armas do Brasil, Bolton foi um dos principais responsáveis pela demissão do diplomata brasileiro José Maurício Bustani que, à frente do Órgão para Proibição de Armas Químicas, das Nações Unidas, atestou a inexistência de armas químicas no Iraque.

O deboche do presidente americano aconteceu ainda dois meses depois da escolha do chanceler Ernesto Araújo que aposta em sua liderança como a salvação do Ocidente e vem fazendo eco à sua política externa. A retórica beirando o escárnio do novo messias da civilização ocidental veio depois da propalada intenção de Bolsonaro de abrir o território nacional a uma base militar americana, gostosamente saudada pelo secretário de Estado, Mike Pompeo.

O impetuoso alinhamento foi freado por intervenção dos generais do governo mas vê-se, pelo discurso de Trump, que não se deu sem danos à imagem do Brasil. Com um governo cada vez mais da caserna, é natural que ganhe escopo a defesa da corporação nas reformas do Estado que aí virão. Mas só um esforço, de igual monta, poderá conter a desenvoltura com a qual este governo afronta os símbolos da soberania.

A designação de mais um general da reserva, como Sérgio Etchegoyen, para a embaixada brasileira em Washington, como chegou a ser cogitado, mais serviria para tornar mais tensas as relações entre Itamaraty e Forças Armadas do que para dar conta das inquietações sobre o futuro das relações externas do país.

Se o chanceler Ernesto Araújo tem prazo de validade, o passe de quatro anos do presidente da República, renovável por mais quatro, oferece tempo suficiente para que o dogmatismo, dissociado dos interesses permanentes do Estado nacional, leve a danos sempre mais fáceis de serem disseminados do que revertidos.

A retaguarda burocrática de Brasília e da representação brasileira em organismos internacionais até podem segurar os impactos da nova ideologia do poder no cotidiano do governo, mas na diplomacia a retórica não é inócua. E arrisca se refletir na capacidade política do Brasil de articular os acordos de que precisa para manter a salvo o desenvolvimento nacional. Na diplomacia, o único clone possível da América em primeiro lugar é o Brasil em último.

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