terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Míriam Leitão: Liberais, fiéis e militares

- O Globo

O governo que toma posse hoje mistura liberais, evangélicos e militares. Para ter sucesso, precisa de unidade interno e escolha de foco

O governo Jair Bolsonaro, que toma posse hoje, é uma frente heterogênea de militares, liberais e evangélicos. O primeiro desafio será organizar as agendas. Na economia, o futuro ministro Paulo Guedes terá a oportunidade de implantar as bases da economia liberal. Guedes sempre culpou a social-democracia, rótulo no qual ele mistura PSDB e PT, como a responsável pelos problemas nacionais. Há grande expectativa em torno da sua gestão. Na teoria, liberais reduzem impostos. Como será na prática?

O desafio para ser liberal no Brasil agora é que há um grande rombo fiscal a vencer. Se reduzir impostos, o governo pode aprofundar o déficit. Ao mesmo tempo, há uma renúncia fiscal que supera R$ 300 bilhões ou 4% do PIB. São descontos para alguns setores e combatê-los seria a coisa certa a fazer, mas isso elevaria a carga tributária. O dilema é: como subir impostos, quando se deveria reduzi-los, e como reduzi-los se o rombo é enorme?

O Simples Nacional é a maior conta dessas isenções e foi formulado para ser um sistema tributário mais leve para empresas de faturamento reduzido. Em 2019, o gasto tributário com o Simples chegará a R$ 87 bilhões, 28% do gasto total, quase três vezes o orçamento do Bolsa Família. Numa conversa interna, Paulo Guedes admitiu que, como um liberal, terá muita dificuldade de subir impostos para pequenas empresas. O erro nesta ideia é que o teto para a inclusão no Simples subiu tanto que as empresas que se enquadram não são necessariamente pequenas. Outro programa caro é o da Zona Franca de Manaus, que tem forte lobby. Há também as deduções da pessoa física, mas isso aumentaria tributos para a classe média. Há as isenções para entidades sem fim lucrativo, mas nelas estão as igrejas que comandam uma ala do governo.

No mundo inteiro está havendo queda de tributos para empresas. E um ministério da Fazenda liberal não pode estar fora dessa onda, até porque o Brasil tem uma das maiores tributações do mundo sobre as companhias. A estratégia terá que ser ao mesmo tempo acabar com os privilégios de alguns setores, elevando os seus impostos, mas reduzir os tributos em geral para não começar subindo a carga tributária, o que seria constrangedor para um liberal. No meio dessa mudança é preciso tomar cuidado para não encolher as transferências para estados e municípios.

Na Previdência, o sonho de Paulo Guedes é oferecer a nova fórmula de aposentadoria, a da conta individual, para os jovens que tenham 16 anos. Seria perfeito porque isso é bem liberal. Em vez de contribuir no esforço coletivo do sistema, depositariam em sua própria conta de aposentadoria. A ideia na equipe é que, como eles votaram pela primeira vez na eleição de 2018, teriam com essa medida a prova concreta da mudança, porque entrariam no mercado de trabalho já fora da velha Previdência. Porém — há sempre “poréns” no caminho de um liberal no Brasil — se a mudança para a capitalização for imediata, desequilibrará ainda mais o sistema atual.

Os muitos militares de alta patente que compõem os quadros superiores do governo têm visão estratégica e sabedoria tática. Por isso não desconhecem que precisam primeiro vencer a guerra interna — dentro do próprio governo — em torno dos projetos mais difíceis. Em seguida, é preciso vencer a batalha da comunicação. Se o governo continuar alimentando a fantasia de que está lutando contra os grandes jornais e as maiores emissoras de televisão vai desperdiçar tempo, munição e recursos. A dispersão de esforços é um erro fatal. Militar que não sabe isso coleciona perdas em campo.

Existem outras forças dentro da aliança que levou o presidente Jair Bolsonaro à Presidência. No conjunto, o grupo se propõe a ser liberal na economia, conservador nos costumes e duro no combate ao crime. Mas se confunde na hora de escolher os objetivos setoriais. No Ministério da Educação, o governo promete “combater o lixo marxista”, nas Relações Exteriores, “o globalismo e a falta de Deus”, no Meio Ambiente, a “indústria da multa”, e o Ministério da Justiça quer o direito de posse de armas por decreto. É grande a lista das falsas batalhas.

Para ter sucesso, o governo que será instalado hoje terá que saber que lutas vai travar e o que é verdadeiramente importante para o Brasil.

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