terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Marli Olmos: Quem paga o preço das escolhas da Ford

- Valor Econômico

Sem investimento, Camaçari pode seguir destino do ABC

Uma semana depois de a Ford ter anunciado o encerramento das atividades em São Bernardo do Campo (SP), os funcionários retornam à fábrica condenada hoje. Em princípio, está prevista uma assembleia, com orientações dos sindicalistas, seguida de uma passeata pela via Anchieta.

Movimentos e símbolos do passado voltam à cena numa indústria que já não é a mesma. Historicamente, demonstrações do poder de mobilização sempre foram uma tática usada pelos metalúrgicos do ABC. E a via Anchieta, famoso corredor de escoamento da exportação de veículos pelo Porto de Santos - ou da importação de peças no sentido contrário - já foi palco de muitas passeatas da categoria.

O movimento de hoje servirá, ao menos, para mostrar como mudanças de rota nas estratégias da indústria automobilística são capazes de arruinar polos industriais em qualquer parte do mundo. Concretamente, no entanto, o ruído da mobilização sindical dificilmente conseguirá reverter a decisão de fechar as portas da fábrica cinquentenária.

Toda a indústria automobilística passa por mudanças. Mas o comportamento da Ford, nos últimos anos, deixou claro seu desinteresse pela América do Sul. Recentes decisões, como enxugar as operações na Europa, também revelam que, para essa empresa americana, não vale mais a pena investir em regiões onde produz veículos com margem de lucro menor.

No Brasil, a montadora ainda tem uma fábrica de motores em Taubaté (SP) e outra de veículos em Camaçari (BA). A unidade baiana ganhou sobrevida graças a um programa de incentivos tributários para montadoras na região Nordeste, prorrogado nos últimos dias do governo de Michel Temer.

Essa vantagem fiscal será, no entanto, insuficiente para manter a fábrica baiana ativa. Sua continuidade depende de novos projetos. Da mesma forma, a operação de Taubaté ficará na berlinda enquanto não chegarem notícias dos planos da companhia para a região.

É cada vez mais clara a necessidade de a Ford definir uma estratégia para a América do Sul. Caso contrário, a operação continuará a definhar e as unidades de Camaçari e Taubaté correm o risco de ter o mesmo fim da fábrica do ABC. No ano passado, a empresa registrou prejuízo de US$ 678 milhões na região.

De Camaçari saem dois modelos: o compacto Ka e o utilitário EcoSport. Terceiro carro mais vendido no mercado brasileiro, o Ka foi lançado no país em 1997 e já passou por várias gerações. A última mudança foi feita no início deste ano. O projeto original do EcoSport, 20º mais vendido no mercado brasileiro, é de 2003, foi totalmente desenvolvido no Brasil e, à época, serviu como importante fôlego para a fábrica de Camaçari, inaugurada dois anos antes.

A longevidade de determinados carros nem sempre representa um problema. O Gol, da Volkswagen, é um valente sobrevivente da década de 1980. Foi o quarto mais vendido no mercado brasileiro em 2018 e, na história do país, o único, até agora, a ultrapassar o Fusca em volume de vendas.

Mas num mercado tão competitivo como o brasileiro não basta apostar na sobrevida de alguns veículos. É essencial investir na renovação do portfólio, como tem feito a maior parte das montadoras.

Mas a Ford tem feito escolhas. Pesou contra a operação brasileira a recente decisão da direção mundial de reduzir presença no segmento de carros e concentrar-se na de picapes e utilitários esportivos. Isso a fará menor, sem dúvida, mas mais lucrativa.

Nesse sentido, está em curso um profundo enxugamento das operações, por meio da qual a Ford se afasta cada vez mais do mercado de automóveis. Em 2018, a montadora vendeu mais de 1 milhão de picapes em todo o mundo. O maior mercado é o americano, em que a chamada série F é o veículo mais vendido há quase quatro décadas.

Jim Hackett, presidente mundial da Ford, tem trabalhado numa profunda reestruturação que, segundo ele mesmo disse, deixará a companhia mais enxuta e mais rentável. No ano passado, a companhia obteve lucro de US$ 3,7 bilhões, resultado bem abaixo dos US$ 7,7 bilhões em 2017.

Os planos de Hackett indicam o fechamento de fábricas e demissões em massa também na Europa. Antes de desistir de fabricar caminhões e encerrar a já tímida produção do compacto Fiesta, em São Bernardo, a montadora já havia anunciado o fim da produção do sedã Focus, na Argentina.

Também a Ford está globalmente envolvida na necessidade de reservar recursos para investir em novos conceitos de mobilidade. Enquanto a América do Sul esperava por investimentos da companhia, interrompidos, em 2015, nos dois últimos anos a empresa ampliou alianças com companhias de tecnologia.

A montadora americana tem, hoje, parcerias com empresas como a Qualcomm, para desenvolvimento de comunicação entre veículos e infraestrutura das ruas, com a Lyft, para aplicativos de carona compartilhada, e tem também investido em startups.

Nada indica ainda, no entanto, que a Ford desistiu de investir no Brasil. Existem alguns sinais positivos. No último Salão do Automóvel de São Paulo, em novembro, uma das principais atrações exibidas pela marca foi um veículo utilitário esportivo chamado Territory, por enquanto produzido somente na China. A exibição do modelo no salão foi um teste para medir o interesse do consumidor pelo modelo.

Dias depois, o presidente da Ford na América do Sul, Lyle Watters, embarcou para a China para conhecer mais detalhes do veículo que a montadora americana produz em parceria com um fabricante local, a Jiangling Motors. O executivo declarou, na ocasião, que o veículo, desenvolvido especialmente para mercados emergentes, tinha tudo a ver com o mercado brasileiro.

A exibição do Territory no salão e a viagem de Watters pareciam um prenúncio de que a companhia americana finalmente se preparava para uma aguardada renovação de linha de produtos na América do Sul. Quem sabe a mobilização dos metalúrgicos no ABC, hoje, ajude na inspiração de investimentos em novos projetos. Mesmo que seja na Bahia.

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