A quem interessava matar Marielle Franco?
Na edição em que noticiou a execução de Marielle Franco, VEJA trouxe na capa algo bastante raro — uma pergunta. Algo raro porque a revista evita estampar interrogações na capa por entender que sua missão é oferecer respostas aos leitores, e não perguntas. A execução da vereadora carioca, assassinada com quatro tiros na cabeça, mereceu tratamento incomum por duas razões. Primeiro, porque estava evidente, desde a primeira hora, que Marielle fora vítima de um crime encomendado. Segundo, porque, exercendo ela um mandato parlamentar conquistado nas urnas, seu assassinato representa, como bem definiu o então presidente Michel Temer, um “atentado à democracia”. Por tudo isso, a pergunta se apresentava como um imperativo: a quem interessava matar Marielle Franco?
Pois na semana passada, um ano depois do crime, a polícia prendeu dois suspeitos. Um é o policial militar reformado Ronnie Lessa, suspeito de disparar os catorze tiros que atingiram o carro que levava a vereadora, matando a ela e seu motorista, Anderson Gomes. O outro é o ex-policial militar Elcio Vieira de Queiroz, expulso da corporação há quatro anos, acusado de dirigir o veículo usado na emboscada. Os dois são apontados como membros de uma praga que se dissemina no Brasil, particularmente no Rio de Janeiro: as chamadas milícias — organizações criminosas formadas por policiais e ex-¬policiais que, ditando a lei do mais forte, espalham o terror nos morros e favelas cariocas.
Como acontece com quase tudo no Brasil de hoje, o crime tem servido para fomentar disputas ideológicas, uma vez que a vítima era vereadora do PSOL, negra, feminista, gay e defensora dos direitos humanos — e a disputa tende a ficar ainda mais acirrada agora que veio a público que os principais suspeitos da execução são milicianos tradicionalmente avessos às bandeiras de esquerda. O proselitismo político vai perdurar, mas a busca pela identidade dos mandantes do crime não decorre de nenhuma exigência ideológica. Não é uma demanda de esquerda ou de direita. É uma questão de sobrevivência da democracia, da integridade das instituições, da civilidade.
Como cidadã, Marielle Franco não é melhor nem pior do que o motorista Anderson Gomes ou qualquer uma das mais de 60 000 vítimas anuais de homicídio no Brasil. Como parlamentar, no entanto, ela representava as instituições democráticas, a soberania das escolhas populares. E, como vítima de um crime encomendado com óbvia inspiração política, transformou-se em algo maior — um símbolo involuntário dos riscos que pairam sobre a pluralidade de opiniões, sobre o conjunto das liberdades democráticas.
Por todas essas razões, uma resposta completa e inequívoca sobre seu assassinato é muito mais do que o fim de um inquérito policial. E, por isso, a pergunta continua incancelável: a quem interessava matar Marielle Franco?
Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626
O penúltimo parágrafo devia estampar outdoors por este País afora.
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