sexta-feira, 15 de março de 2019

Entrevista/Anthony Giddens: Brexit não é simples caso de populismo

Para Anthony Giddens, ideólogo da Terceira Via, o Brexit não é simples caso de populismo e vivemos luta global sobre o futuro da democracia

Vivian Oswald | Valor Econômico

"Sou contra a ideia de que o mundo está se tornando dividido, caótico, porque é uma grande mistura. Isso é parte do problema", afirma Giddens

LONDRES - O divórcio do Reino Unido da União Europeia (UE) está num impasse e seu destino ainda é uma incógnita. "Ninguém sabe como vai terminar. Infelizmente, o processo causou muitos danos", diz Anthony Giddens, um dos mais importantes sociólogos britânicos. Ele foi ideólogo da Terceira Via e uma das principais influências do Novo Partido Trabalhista do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair (1997-2007), além de ter ocupado cargos em diversas instituições públicas, acadêmicas e de ter sido consultor para países da Ásia, América Latina e Europa.

Em entrevista ao Valor, na casa de chá da Casa dos Lordes, da qual faz parte, Giddens lamentou o Brexit, falou de populismo e da revolução digital, um dos temas que o fascina. Defendeu o que chamou de "esquerda vanguardista", uma espécie de releitura pós-era digital da sua Terceira Via de 20 anos atrás - como resposta às grandes questões das sociedades contemporâneas, a britânica inclusive.

Nascido há 81 anos em Edmonton, no Norte da Inglaterra, uma das regiões que mais pode sofrer com a saída do Reino Unido da União Europeia, Giddens afirma que o Brexit não é um caso simples de populismo. O que está por vir ao fim desse processo que se arrasta desde o referendo de junho de 2016, diz, é motivo de preocupação. "Falta um plano aceitável e coerente para o país."

Giddens observa que o mundo nunca enfrentou tantos perigos, mas diz acreditar que as oportunidades são maiores. A resposta certeira ao "como vai?" do garçom que traz seu chá verde mostra, com boa dose de humor britânico, como se sente hoje: "Estou bem. Em melhor forma do que o mundo, espero".

Valor: O Reino Unido vive um momento decisivo. Com ou sem Brexit, o país continua dividido. É a mesma onda populista que varre o resto do mundo?

Anthony Giddens: O Brexit não é um caso simples de populismo. Não se pode encaixar o que está acontecendo com a história britânica em algum tipo de premissa global sobre o populismo. Temos que partir do princípio de que a relação entre o Reino Unido e o resto da Europa sempre foi marginal e difícil. [O primeiro-ministro] Winston Churchill foi uma das pessoas que lançou a União Europeia, mas disse que "vamos estar sempre meio destacados e vamos olhar para o 'mar aberto'". Isso significava o resto do mundo e o Atlântico, a seus olhos. Era uma época em que o império [britânico] estava substancialmente intacto. O Reino Unido sempre teve relação deslocada a respeito do resto da UE. Tem sido um processo fragmentado e caótico. Isso se soma às divisões a que você se refere, porque, quando iniciado, não foi um processo autêntico. [O ex-primeiro-ministro] David Cameron era pró-UE e só convocou o referendo para tentar sanar divisões dentro do seu partido, e não por visar o interesse nacional.

Valor: Por que a vitória do Brexit foi tão apertada diante dessa bagagem histórica?

Giddens: A coisa foi sequestrada por um grupo composto, em parte, por indivíduos bizarros. Isso pode ter contribuído para as fraturas no país. Mas o Reino Unido sempre debateu-se com a sua identidade. A famosa indagação de que o "Reino Unido perdeu o império e ainda não encontrou um papel para si" ainda se aplica. Esse é o pano de fundo do que acontece na vida real em diferentes partes do país. O Reino Unido é por si só uma entidade frágil. É por isso que o tema da Irlanda é tão central. Estive marginalmente envolvido com esse assunto no governo Tony Blair. Na Irlanda do Norte, criou-se o processo de paz, que agora está muito vulnerável. O que aconteceu foi [que o Brexit tratou de criar] uma espécie de efeito em cascata. O resultado foi muito apertado. Sabe-se que referendos podem ser afetados até pelo fato de estar chovendo. No dia seguinte, o resultado poderia ter sido outro. Se houvesse um líder trabalhista diferente, a direção poderia ter sido outra. Se o Brexit não tivesse acontecido, é possível que [Donald] Trump não fosse presidente dos EUA, porque o resultado foi definido por 134 mil votos em um universo de cerca de 130 milhões de eleitores. Há incertezas nesses processos, mas, depois que acontecem, não dá para voltar atrás facilmente. Para mim, há muitas coisas interligadas. Difícil prevê-las.

Valor: Qual a origem dessa polarização aqui?

Giddens: No caso do Reino Unido, são a história, o referendo e questões estruturais mais amplas, algumas das quais globais. Vivemos no mundo mais interconectado da história. Os eventos locais afetam os globais, e vice-versa. O pano de fundo estrutural para o que ocorre em tantos países pode ser a transição geopolítica da sociedade mundial, que é o relativo declínio da Europa e a dificuldade dos EUA com potências emergentes no começo do século asiático. As conquistas da China são inacreditáveis em termos de desenvolvimento econômico, saindo de um período de fome em massa nos anos de Mao [Tsé-tung]. Trump tem dificuldade de lidar com isso, e o Brexit está ligado a essa transição geopolítica em certa medida.

Valor: Qual o caminho para o mundo dividido?

Giddens: Todos vivem falando em divisões e antagonismos, mas é um mundo mais cheio de nuanças. Existem processos tremendos de integração global. Todo mundo está fazendo um "oba oba" em relação a uma crise da democracia. Ela existe, mas tem nuanças. Não sabemos no que vai dar, mas em quase todos os lugares existe uma reação. Estamos em meio a uma espécie de luta global sobre o futuro da democracia. Não acho que esteja resolvida. As forças opostas são muito fortes. O que acontecer nos EUA vai influenciar o futuro da história. Não sei como Trump vai reagir se for marginalizado na sua segunda eleição.

Valor: Existe uma Terceira Via?

Giddens: Sim, mas acho que é um erro pular na narrativa da desintegração. É mais misturado. Steven Pinker, em seu "O Novo Iluminismo", trata disso. Estamos diante de um progresso gigantesco. Não apenas na China, mas em vários países. Uma enorme emancipação das mulheres, apesar dos problemas e das questões de gênero. É um mundo mais equilibrado. Tudo isso representa forças poderosas contra as divisões. Tudo isso está entrelaçado. Se você me pedir para apontar a maior transformação para o equilíbrio de forças nas sociedades, diria que é a revolução digital. Porque é intrinsecamente global, afeta o futuro do mundo pela política e pela vida pessoal. Esse é o pano de fundo para muitas das mudanças. Quando você fala na ascensão de demagogos, isso não acontece só porque as mídias sociais são como são, mas porque, em boa medida, podem atingir diretamente, de maneira imediata, a sua audiência, de um jeito que nunca puderam. Trump atinge sua base com o Twitter. O populismo de direita está vinculado ao mundo digital. Mas não é só isso. Está vinculado a outras forças, é a chave para entender o que acontece.

Valor: É possível reconstruir a democracia?

Giddens: Não podemos nos deixar levar pela narrativa simples de que o mundo está se desintegrando. Não está. Estamos diante de uma grande mistura de integração e divisões gigantescas, e estão todos interconectados. Só quando compreendermos isso saberemos como contestar essas divisões. O que acontece com o Brexit, com Trump, com [Jair] Bolsonaro, com [Narendra] Modi, com a China, vai influenciar tudo isso. Sou contra a ideia de que o mundo está se tornando dividido, caótico, porque é uma grande mistura. Isso é parte do problema. Uma questão-chave do populismo de direita, para mim, é a migração, não como um fato, mas como um símbolo. É algo com significados diferentes, mas uma ameaça à identidade, o que considero mais importante do que outros fatores. A migração está sendo afetada pelas mudanças que estamos discutindo. Migrantes que saem da África para a Europa. É a primeira vez na história que a África não está fora do mundo. Isto aqui é um "gadget" [mostrando o celular], mas o que importa é o que tem por trás dele. Os satélites que permitem o que ele faz. O GPS é geopolítico. Tenho trabalhado com inteligência artificial, que também é geopolítica.

Valor: As novas tecnologias podem ser usadas para o bem ou para o mal?

Giddens: No mundo digital, as grandes comunidades têm as mesmas características de pequenas comunidades. Há emoções, fofocas, intrigas, os "bullies" do vilarejo, como se comportam certos líderes políticos cujos nomes prefiro não dizer. As "fake news" são uma parte do problema, que é relativamente estrutural. Você pode atingir audiências de maneira bem diferente do passado recente, estamos falando de 20 anos. As pessoas que estão instigando essa última fase da revolução digital, como Marc Zuckerberg, com o Facebook, não têm ideia das forças que estão libertando no mundo. Existe forte reação e haverá uma regulação mais forte.

Valor: Essas mudanças geram ansiedade. Esse foi um tema no Fórum Econômico Mundial de Davos. Provocam tensão e divisão nas sociedades...

Giddens: São mudanças que nunca se viram. A revolução digital é uma das grandes forças motrizes disso em muitos aspectos. Não no futuro do trabalho. O mundo digital e a robótica já transformaram boa parte dos postos de trabalho. Apenas 8% da mão de obra britânica trabalham na indústria, quando eram 30%. A principal razão não é o deslocamento para outros países de que se queixa Trump, mas a automação, que foi alçada a um novo patamar com esses componentes da integração e a revolução digital. Trata-se de uma mudança estrutural que pode estar na sua fase inicial. A inteligência artificial está promovendo uma simulação de processos do cérebro humano. A próxima fase vai transformar os empregos executivos e algumas profissões. Não sabemos como vai acontecer. Não acho que seja totalmente negativo.

Valor: O senhor está mais otimista do que pessimista?

Giddens: Sou uma mistura dos dois. Acho que as possibilidades são tão grandes quanto os riscos. Eles são grandes, porque o mundo nunca teve armas nucleares nessa escala. Não havia a mudança do clima. Seja lá o que o seu presidente for dizer, a mudança do clima, para mim, é algo real, comprovada por uma quantidade gigantesca de evidências científicas. Nunca tivemos de lidar com um mundo desses. Mas reforço que o conjunto ainda é uma grande mistura de aspectos positivos e negativos. Se voltarmos ao Brexit, não acho que a conclusão desse processo esteja clara. Não se trata apenas de um processo em que o Reino Unido está deixando a Europa. Você passa pelo parlamento todos os dias e vê uma maioria de manifestantes pró-europeus lá. Nunca tivemos antes neste país um movimento pró-europeu tão forte. Há possibilidades positivas e perigos para o mundo, e esses últimos são muito fortes, com certeza.

Valor: Ainda é possível buscar a Terceira Via?

Giddens: A Terceira Via era apenas um rótulo. A minha ideia há 20 anos era que deveríamos ir além dos tradicionais neoliberalismo e thatcherismo, de um lado, e do socialismo e da social-democracia, de outro. Tínhamos que entender as grandes mudanças estruturais por que passava o mundo, e a maior delas era a aceleração do processo de globalização, que aumentava a interdependência global, que limitava o poder das nações. Por isso, já não se podia mais continuar tocando os projetos de sempre da maneira que antes. Havia inúmeras mudanças afetando a estrutura de classes, que estavam conectados a boa parte do que estamos discutindo. A Terceira Via, para mim, nunca foi algo "entre" uma coisa e outra, mas "além". Não usaria mais esse termo. Precisamos de uma esquerda vanguardista. Sou de centro-esquerda, progressista, esta é a minha visão de mundo. Quando a Terceira Via emergiu globalmente, havia trabalho intelectual por trás. Fizemos análises estruturais para mostrar como a política poderia se adaptar. É o que temos de fazer hoje, quando a velocidade das mudanças é ainda maior e os problemas, mais agudos.

Valor: E como chegar a essa esquerda vanguardista?

Giddens: Temos de repensar o futuro da esquerda, reconhecer que as questões que até a extrema-direita tomou para si, são reais. Uma das principais é como viver em uma sociedade multicultural com nível de mobilidade como este que vemos. Recomendo um dos melhores livros sobre populismo de direita hoje, na minha opinião, "Strangers in Their Own Land", de Arlie Hochschild, que se mudou para uma comunidade para viver com o que chamamos de populistas para entendê-los. Os habitantes dessa comunidade sentem que minorias étnicas têm privilégios em relação a eles, com políticas especiais, quando ninguém os ajuda. Essa expressão, "estrangeiros na sua própria terra", é ótima para explicar as origens do populismo, que estão na questão da identidade, elementos inconscientes, horríveis como o racismo. Se voltamos ao Brexit, vemos que britânicos mais velhos votaram pela saída da UE. Normalmente, os mais velhos se sentem prisioneiros em um mundo que está mudando ao seu redor. Outra expressão que ela usa é "migrantes sem sair de casa".

Valor: Do que se trata?

Giddens: Se você é relativamente pobre, fica preso na cidade onde vive. Não tem a chance de sair. Ainda é um migrante, porque o mundo está imigrando de você. Seu emprego desaparece e você não sabe o porquê. Essas duas expressões são importantes para entender o populismo, que tem lados perversos. Personalidades doidas e excêntricas têm apelo nesse tipo de situação. Com conexão direta com a população, sobressaem, sobretudo num mundo em que o excêntrico tem um apelo para as mídias. Populistas de esquerda fazem o mesmo. Jeremy Corbyn [líder do Partido Trabalhista] usou os meios digitais para mobilizar os seus seguidores. Não estaria nessa posição [atual] não fosse isso.

Valor: Os populistas estão usando melhor as novas mídias?

Giddens: Não acho que seja simples. Sim, eles usam o Twitter e outras mídias para atingir suas audiências, o que transforma grandes comunidades em uma comunidade local. Você passa a ser o senhor local numa comunidade global. E usa seus "bullies" locais. Mas é uma faca de dois gumes, e a gente não sabe no que vai dar. A nova mídia cortou o caminho do mecanismo ortodoxo das organizações democráticas. Também abriram lugares como este [e aponta para a Casa dos Lordes] para a opinião pública. Muito do que se faz em um parlamento depende do fato de não fazê-lo de maneira pública, para obter acordos. Mas isso acabou. Tudo é televisionado. Acho que isso muda a natureza da democracia, e estamos tentando nos adaptar. Voltando à Terceira Via, temos que construir nova forma de política de centro-esquerda.

Valor: Como?

Giddens: Tentando fazer o que fizemos há 20 anos, mas de maneira diferente, porque agora há esse componente digital. Há muitas possibilidades positivas de reconstrução da esquerda progressista. Não pode ser o socialismo tradicional, porque seu principal agente era a classe de trabalhador manual, que caiu radicalmente, em função do declínio da manufatura. É preciso colocar questões como gênero, igualdade e meio ambiente nessa discussão. Não vai ser fácil colocar isso tudo junto. Na social-democracia é mais fácil. Mas essas viraram questões mais centrais. As pessoas podem ir procurar respostas simples, e é isso o que demagogos oferecem.

Valor: Será que eles vão conseguir cumprir o que prometem?

Giddens: Não. Mas temos de evitar que o desfecho seja catastrófico. Quem sabe qual será o impacto de Trump? Pode haver consequências bem catastróficas. Pode ser tarde demais para lamentar. Não sei se vamos sobreviver a esse século. Mas é o que digo: são grandes oportunidades e grandes riscos. Nunca tivemos um mundo assim. Temos quase 10 bilhões de pessoas no mundo, armas nucleares, mudança do clima, fatores de risco, mas não podemos nos concentrar nos negativos, porque talvez os positivos sejam mais numerosos. Por outro lado, vamos lembrar: a Guerra Fria terminou sem violência.

Valor: Como o Reino Unido se sairá do capítulo Brexit da sua história?

Giddens: O que acontece é fundamental para o futuro do país. Ninguém sabe como vai terminar. Infelizmente, o processo causou muitos danos. Antes do referendo, as pessoas não tinham consciência do que era a UE. Era hostil à migração em várias áreas, mas a UE não era algo presente. Agora, por causa do Brexit, todos têm uma visão diferente. Há muitas emoções em jogo. Vai ser difícil recuar, mas precisamos. Não poderíamos estar numa situação mais caótica. O que não queremos é a volta da violência na Irlanda. Sou pró-europeu e espero que haja um caminho a partir do qual possamos manter boa relação.

Valor: A vida do cidadão vai mudar depois do Brexit em muitos aspectos do dia a dia. Muitos estão preocupados com o que está por vir.

Giddens: Estamos falando aqui de 40 anos da construção de uma série de conexões. Não podemos descartá-las em dois anos. Foram construídas sobre uma fantasia, mas o mundo é cheio delas. Quem poderá emergir como líder político do Reino Unido se tudo desmoronar? Os dois partidos estão em um processo de realinhamento. Há grandes divisões dentro de ambos os partidos. Esse sempre foi um país relativamente estável com o sistema de dois partidos. Há motivo para preocupação. O pior é ter chegado até esse ponto sem plano coerente e aceitável para o país. É fácil dizer, eu sei.

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