- O Estado de S.Paulo
Podemos ter de viver tempos infaustos para os valores democráticos e o exercício da cidadania
Um importante intelectual alemão, Karl Marx, em 1852, no livro O 18 de Brumário, em perspicaz análise do processo político francês dos anos 1848-51, revela como foram criadas as “circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco (Luís Bonaparte) desempenhar um papel de herói”.
Guardadas as singularidades dos acontecimentos na França da época, posteriormente, nos séculos 20/21, fenômenos com alguma similitude com aqueles se sucederam em outros lugares e situações particulares, até mesmo em tempos recentes. Podemos citar como exemplos, circunscrevendo-nos apenas ao continente americano e à contemporaneidade, as eleições presidenciais que elegeram o agrônomo Alberto Fujimori (Peru, 1990), o coronel Hugo Chávez (Venezuela, 1998), o empresário Donald Trump (Estados Unidos, 2016) e o capitão Jair Bolsonaro (Brasil, 2018).
O caso do Brasil, o mais recente, é deveras ilustrativo desses fatos. Político obscuro e sem qualidades, que durante quase três décadas engrossou as fileiras do baixo clero no Congresso Nacional, Bolsonaro fez carreira de deputado federal por partidos fisiológicos e clientelistas ou de aluguel. Representante do corporativismo militar e do nacional-estatismo, arauto do regime ditatorial e apologeta de seus métodos despóticos e cruéis, manteve sempre a coerência de concepções e a constância de práticas em sua trajetória parlamentar: a demonização da política e o ultraje da democracia, a glosa dos direitos de cidadania e a hostilidade aos valores humanistas, o combate às manifestações identitárias e multiculturais.
O desafio, todavia, é explicitar como um sujeito incivil e rústico, sem projeto, sem estrutura partidária e com recursos limitados, pôde angariar tantos adeptos e obter tamanha votação, que permitiu sua eleição para a Presidência da República de um país deveras complexo.
Inúmeras têm sido as respostas dadas por jornalistas e cientistas políticos, por especialistas e leigos, para compreender o sucedido. Dentre elas, algumas podem ser destacadas:
1) A severa crise econômica e suas sequelas teriam criado insatisfação generalizada.
2) A revelação dos muitos e graves escândalos de corrupção nos diversos níveis do aparato estatal, envolvendo partidos governistas – sobretudo o consórcio PT-PMDB –, associados a práticas fisiológicas, clientelistas e patrimonialistas, teria produzido reprovação indignada do establishment político pela opinião pública. Ademais, seria responsável pelo depauperamento do centro político e pela perda de credibilidade do sistema partidário, permitindo a emergência no cenário político de novos atores.
3) A incapacidade de governos na segurança pública teria propiciado as condições para o aumento exponencial da criminalidade, da violência e da disseminação do medo e da apreensão social.
4) A ineficácia da gestão do Estado e da condução das políticas públicas, concatenada aos malfeitos dos donos do poder, teria criado clima de insatisfação e descrédito sem precedentes da política e dos políticos, dos partidos e das instituições.
5) O ativismo de entidades e movimentos identitários, na busca de reconhecimento, teria desencadeado uma reação conservadora afrontosa, em especial de igrejas evangélicas, em defesa de valores tradicionalistas.
6) Os influxos da onda conservadora e/ou de direita em ascensão na Europa e nos Estados Unidos teriam fomentado a disseminação de concepções extemporâneas e reacionárias: xenófobas, racistas, populistas, nacionalistas e antiglobalistas – em consonância, propalou-se uma atroz persecução a socialistas e partidos de esquerda em geral, além de movimentos identitários, de defesa de direitos civis e/ou humanos. A ira antipetista propagou-se como uma centelha e atingiu a esquerda indistintamente.
Esse conjunto de fatos e fatores teria produzido uma situação de mal-estar sociopolítico de vulto, um verdadeiro estado de anomia e seria mesmo responsável pelo desencadeamento, em 2013-15, de um agressivo e inusitado movimento antissistema, que conseguiu mobilizar grandes contingentes de manifestantes nas ruas e nas redes sociais. Com palavras de ordem “contra tudo o que está aí” e profissões de fé cruzadistas – em resguardo da pátria e da ordem, da família e dos “bons costumes”, de Deus e da civilização cristã – foram aguçados sentimentos elementares e ordinários que estariam latentes e afloraram de maneira impetuosa.
Nesse clima e/ou conjuntura é que teriam sido criadas as condições para a emergência da candidatura Bolsonaro. Apresentado como outsider, antipolítico, salvador da pátria, com uma retórica insolente e beligerante, preconceituosa e regressista, anti-secularista e anticosmopolita, conquistou ampla massa de adeptos dos mais variados estratos sociais. Explorando ardilosamente a mídia eletrônica, reuniu uma legião de tuiteiros, youtubers, blogueiros, etc. – orientados por ideólogos do submundo da internet – numa incomensurável operação de propaganda e proselitismo político-ideológico.
Se as interpretações ou constatações acima expostas forem verossímeis, elas sinalizam que podemos ter de vivenciar, nos próximos anos ao menos, tempos infaustos para os valores e procedimentos democráticos e para o exercício da cidadania. O cargo de presidente da República não enseja, entretanto, per se, prerrogativas de domínio desmesurável e arbitrário – os mecanismos de poder e os meios de exercê-lo tendem a restringir possíveis investidas antirrepublicanas, de insolência política, de ultraje da democracia e de constrangimento de direitos. As garantias institucionais e constitucionais vão depender, contudo, do ativo e engenhoso protagonismo dos agentes da sociedade civil e política, comprometidos com a manutenção do Estado de Direito Democrático, com a publicização do Estado e com as liberdades em sentido lato.
* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
Excelente avaliação. Disse tudo
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