segunda-feira, 15 de abril de 2019

Cacá Diegues: Nelson e nós

- O Globo

Nos anos 1950, com seus dois filmes de estreia e a produção de um terceiro, cineasta iniciou uma revolução que nunca terá fim

O grande cineasta Nelson Pereira dos Santos foi um dos maiores artistas e pensadores da cultura brasileira no século XX. Da cultura brasileira e da criação cinematográfica em países que, quando Nelson começou a fazer filmes, estavam ausentes das telas, exilados da história oficial do cinema no planeta. Países e povos que, naquele momento, não tinham representação alguma deles mesmos, imagens e sons do que eram e do que podiam ser.

Nos anos 1950, com seus dois filmes de estreia e a produção de um terceiro, Nelson iniciou uma revolução que nunca terá fim, enquanto houver povo no mundo que não se manifeste nessa arte. Seus filmes eram “Rio, 40 graus” (1955) e “Rio, Zona Norte” (1957), além de “O grande momento” (1958), dirigido por Roberto Santos. Quando fez seu primeiro filme, o cinema que circulava universalmente se resumia às produções de Hollywood e às de alguns países da Europa Ocidental, como Inglaterra, França e Itália. As raras surpresas que vinham da Escandinávia, do Japão ou da Rússia, assim como de outras inesperadas cinematografias, só faziam confirmar a exceção.

A origem do Cinema Novo brasileiro, exceção que deu cria, está nos filmes e na atividade política de uma geração que se reuniu em torno de Nelson. Esse movimento, a fundação da primeira cinematografia nacional e moderna em país do então chamado Terceiro Mundo, foi reconhecido nos festivais internacionais. Como consequência do sucesso nos festivais, os filmes começaram a ser distribuídos em circuitos comerciais, pelo mundo afora. Inclusive nos próprios Estados Unidos, junto a um público jovem e universitário.

Chegada tardia do modernismo ao nosso cinema, o Cinema Novo brasileiro, liderado por Nelson, foi o primeiro movimento cinematográfico de um país periférico a ter uma repercussão significativa no circuito internacional. Sobretudo a partir dos festivais de Berlim e Cannes de 1964, quando “Vidas secas”, de Nelson, “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha, e “Os fuzis”, de Ruy Guerra, surpreenderam cinéfilos de todo o mundo. Não se tratava apenas de filmes inesperadamente bem feitos, à altura do que se fazia em Paris, Londres ou Roma. Mas de um cinema que revelava valores dramáticos, éticos, culturais, étnicos etc., de uma natureza específica. A cultura original de uma nação original que se manifestava nas telas. Um cinema nacional.

Jamais me esquecerei da sessão inaugural, no Palácio dos Festivais, em Cannes, de “Deus e o diabo na terra do sol”. Desde o início da projeção, o público sofisticado de Cannes se inquietava com o que via na tela — rostos, personagens, costumes, dramas, músicas, cenários, tudo nunca visto antes, contando uma história nunca contada antes.

Quando a sessão acabou, a sala já estava a menos da metade, e os espectadores que não a haviam deixado não sabiam direito como reagir. Até que alguns começaram a aplaudir. Em breve, o aplauso se tornou uma ovação consagradora, e eu me senti diante da descoberta de uma cultura vinda de outra galáxia, que aquele público nunca pensara que havia de existir. Tive certeza de que valia a pena fazer filmes no Brasil. E fazê-los daquele jeito, fiel ao que estivesse diante de nós.

Visto nesse mesmo Festival de Cannes, podemos medir a repercussão de “Vidas secas” pelo que escreveu François Truffaut sobre ele, dizendo tratar-se de “um filme que justifica a existência do cinema”.

Nelson foi um grande mestre, que nos ensinou tudo com doçura e real interesse pelo que o outro fazia. Mais velho e mais experiente que nós, nos ensinou a prática de um modo de fazer que permitia a existência de uma economia cinematográfica, num país periférico como o Brasil. Um país que tentávamos descobrir e revelar a cada filme.

O exemplo de Nelson não ficou restrito àqueles jovens cineastas que o cercavam numa mesa de edição, nas sessões noturnas de trabalho no Laboratório Líder, para vê-lo praticar o milagre do cinema. Ele contagiaria primeiro os cineastas latino-americanos e depois os de todo o resto do mundo onde era preciso fazer cinema, mesmo que o cinema não tivesse como ser feito. Hoje, na medida de seus valores e da crescente crueldade dos mercados, circulam pelo mundo todo filmes de toda parte, da Coreia à Romênia, do Irã a Moçambique, do Mali à Tailândia, do Equador à Guatemala. Porque cada povo sempre terá o que dizer de si mesmo e surpreender os outros.

Nelson nos deixou em 2018. Ousei então me candidatar à sua sucessão, na Academia Brasileira de Letras, para onde fui eleito e tomei posse nessa última sexta-feira. Amigos de dentro e de fora da ABL me incentivaram a candidatura. Mas a “pressão” decisiva foi a da necessidade de guardar a lembrança de meu antecessor como o inventor de um cinema, mestre e guia de uma geração. E de qualquer outra geração do cinema brasileiro, mesmo as dos que nunca viram um filme seu. Mesmo esses são tributários da luz imortal de Nelson Pereira dos Santos.

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