domingo, 21 de abril de 2019

Luiz Carlos Azedo: Santos e dragões

Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Após 20 anos de regime militar e 34, de democracia, o Brasil ainda não se livrou do populismo, do messianismo e do banditismo, que transitaram do Brasil rural para o urbano”

A trilogia Deus e o diabo na terra do Sol (1964), Terra em transe (1967) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1968), que revolucionou o cinema brasileiro e teve grande impacto entre cineastas do mundo inteiro, apesar do contexto político em que foi realizada, trata de temas que permanecem atuais: o populismo, o messianismo e o banditismo. Messianismo e banditismo representam respectivamente Deus e o diabo, mas o maniqueísmo entre ambos, uma construção do cristianismo, não muda a realidade. Glauber tinha entre 25 e 30 anos quando produziu sua trilogia, da qual a obra mais importante, esteticamente, é Deus e o diabo, que estreou no dia 10 de julho de 1964.

O filme diz muito mais sobre a identidade nacional do que a simples alegoria do golpe militar de 1964, embora Glauber tenha sido perseguido, principalmente após o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, quando o regime se tornou uma ditadura aberta, na avaliação do ex-ministro da Educação Jarbas Passarinho. Inspirado na obra O Diabo e o bom Deus, do filósofo francês Jean Paul Sartre, Glauber adapta livremente o roteiro, para retratar a relação entre a religião e o poder no sertão brasileiro. Seus personagens, porém, são arquétipos que transcendem os contextos regional e temporal.

Manuel (Geraldo Del Rey) se liberta do patrão explorador (Mílton Roda) e, em companhia da mulher, Rosa (Yoná Magalhães), junta-se aos fanáticos liderados pelo profeta negro São Sebastião (Lídio Silva) e, depois, ao cangaceiro Corisco (Othon Bastos). O matador Antônio das Mortes (Maurício do Valle) é contratado pela Igreja e pelos latifundiários para eliminar as ameaças ao status quo que constituem tanto o líder messiânico quanto o justiceiro do cangaço. Glauber explora a literatura de cordel para tecer a trama do fanatismo religioso. Em meio a alucinações sebastianistas, revelava influências do neorrealismo italiano e da nouvelle vague, com cenas inspiradas em Luis Buñuel, Sergei Eisenstein e Akira Kurosawa. Glauber morreu aos 64 anos, consagrado como cineasta e incompreendido como gênio na cultura nacional.

A crítica ao sebastianismo e ao banditismo é sofisticada. Os discursos de Sebastião prometem o céu na terra: “Agora eu digo, o outro lado de lá, deste Monte Santo, existe uma terra onde tudo é verde, os cavalos comendo as flores e os meninos bebendo leite na água do rio. O homem come o pão feito de pedra e poeira da terra vira farinha. Tem água e comida, tem a fartura do céu e todo dia, quando o Sol nasce, aparece Jesus Cristo e Virgem Maria, São Jorge e meu Santo Sebastião”. Rosa percebe que as promessas do profeta não levarão a lugar nenhum. Sebastião também incomoda a elite local. O padre solicita a Antônio das Mortes, assassino de aluguel, que mate Sebastião e todos os seus seguidores; ele, porém, afirma ter receio de cumprir tais ordens por mexer com coisas de Deus. Antônio das Mortes tem medo de enfrentar Sebastião e seus seguidores.

Viés antropológico
Sebastião é morto pelas mãos de Rosa, após o profeta exigir de Manuel o sacrifício de sua mulher e de uma criança. Seus seguidores são mortos por Antônio das Mortes. Em fuga, Manoel e Rosa encontram o grupo de Corisco, veem uma oportunidade de mudar de vida. Diferente do messianismo, o cangaço não se baseia em uma entidade surreal para acabar com o sofrimento do povo, e sim no reconhecimento da estrutura de poder e na manutenção, por parte dela, das condições sociais a que é submetido. Eles não ficam à espera de um anjo guerreiro vir arrancar a cabeça dos inimigos, milagrosamente. O banditismo social se propõe a cortá-la. No Dragão da maldade contra o santo guerreiro, que encerra a trilogia, Glauber junta a devoção de um santo à bravura de um guerreiro e projeta um novo messianismo, quando Antônio das Mortes abandona o Dragão da maldade e adere à causa do Santo guerreiro. Insinua um certo protagonismo popular, alternativo ao poder das oligarquias e ao banditismo do cangaço.

Após 20 anos de regime militar e 34, de democracia, o Brasil ainda não se livrou do populismo, do messianismo e do banditismo, que transitaram do Brasil rural para o urbano. Muito menos do maniqueísmo que impede essa ultrapassagem. São três ingredientes da nossa política que estão aí vivíssimos, no fenômeno da eleição do presidente Jair Bolsonaro, na resiliência eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e na dramática situação do Rio de Janeiro, onde o banditismo das milícias emula com o tráfico de drogas. São elementos da vida nacional retratados há 55 anos por Glauber Rocha, um viés antropológico vivíssimo da política brasileira, que atrasa e puxa o país para baixo.

Feliz Páscoa!!!

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