- O Globo
O governo nos fez perder muito tempo até agora, mas o risco real é o país não ver a diferença entre uma bizarrice e uma mentira
O que é espantoso neste governo é como ele é capaz de perder o próprio tempo e o nosso. Bizarrices, debates ociosos ocupam as horas e consomem energias que deveriam estar dedicadas ao esforço de enfrentar os inúmeros problemas que o país tem. Perder tempo quando se tem tanto o que fazer é ruim. Mas são as mentiras que mais ameaçam. Se a ditadura foi ditadura, se o Hitler era de direita ou esquerda, se é melhor ir aos bancos para saber o número de desempregados em vez de consultar o IBGE, se o diálogo do presidente com os partidos é velha ou nova política. Esses são exemplos de temas pautados por este governo. Parecem só inutilidades, mas são, muitas vezes, mentiras perigosas.
O presidente dizer que não se arrepende de ter feito xixi na cama com cinco anos é bizarro. Quando ele compara esse ato infantil involuntário com a defesa que fez na vida adulta de fechamento do Congresso passa a ser ameaça. Ele nunca soube dar peso às próprias palavras, mas exibir, como presidente, essa desordem no sistema de valores é assustador.
É preciso saber separar. De tudo o que fez, falou e provocou na última semana, a mais perigosa é a revisão do passado. Quem diz que não houve golpe nem ditadura no Brasil não está provocando polêmica, está mentindo. Algumas questões da História comportam interpretações, outras, não. Esta é uma república que já viveu dois graves e longos ciclos autoritários.
Um regime que fechou várias vezes o Congresso, interferiu no Judiciário, suspendeu garantias constitucionais, impôs uma constituição autoritária, cassou, prendeu, torturou, matou e ocultou cadáveres de opositores, proibiu estudante de estudar, suspendeu eleições, censurou a imprensa é uma ditadura. Não cabe relativizar. É fato absoluto. Relativa é a tendência política de cada um. O presidente Bolsonaro gostou do período, acha que foi um bom momento, e que os atos do regime não foram crimes. Cada um é livre para ter a própria opinião. Pode gostar ou não. No caso de um presidente da República, essa preferência tem que pôr em alerta as instituições.
A discussão não é apenas bizantina, não é mais uma esquisitice do governo, nem deve ser vista com a condescendência que se dedica aos loucos. Na quarta-feira, Vélez Rodriguez falou em mudar livros escolares. A ideia de impor aos jovens uma versão mentirosa dos fatos históricos é criminosa e ataca a ordem constitucional. Tratar como sendo mais um sintoma de sandice pode ser o pior risco. A queda do ministro não resolve o problema, porque a ideia pode sobreviver a ele.
A revisão histórica em relação ao nazismo é horripilante, porque é a tentativa de reescrever uma das páginas mais dolorosas do século XX: o holocausto dos judeus na Alemanha de Hitler. Não se brinca com questão de tal gravidade. Relativizar o que houve é o primeiro passo para esquecer o que jamais pode ser esquecido.
Na extraordinária capacidade de o governo nos fazer perder tempo, apesar da agenda lotada de questões urgentes, há uma enorme dose de falta de noção. Dias e dias foram perdidos com ofensas em redes sociais de pai e filhos a potenciais aliados na agenda econômica, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. As lutas travadas entre olavetes e não olavetes, os tuítes mal escritos, insensatos e agressivos dos filhos do presidente, a criação de entidades desconhecidas do mundo real são exemplos do mais puro desperdício de tempo.
O perigo é o país se cansar de tanto assunto sem sentido que o governo traz à tona e deixar de reagir com a veemência necessária àquelas questões que realmente nos ameaçam. Intervir na metodologia do IBGE, reescrever livros de história, deixar a educação à deriva, fazer apologia de crimes políticos passados são riscos graves contra os quais o país precisa se proteger.
Quem foi eleito governa durante o seu mandato, cumpre sua agenda, monta sua aliança, nomeia os ministros, tenta passar no Congresso as medidas que acha relevantes para seu projeto. Esse é o jogo democrático. Quem foi eleito não vira dono do país. As instituições precisam estar atentas aos perigos reais que podem estar atrás de uma frase sem noção, de um ato descabido, uma leviandade, uma mentira que se tenta impor como verdade. A democracia em tempos modernos não tem morte súbita. Morre aos poucos.
Disse tudo.
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