sábado, 18 de maio de 2019

Bolsonaro endossa texto que vê país ‘ingovernável’

Texto com tom de desabafo sobre a dificuldade de governar o Brasil sem “conchavos políticos” foi compartilhado pelo presidente Bolsonaro. Ao avalizar o artigo, escrito por funcionário da CVM, Bolsonaro se queixa da afirmação de cientistas políticos de que ele ainda não foi capaz de formar uma base.

Desabafo presidencial

Bolsonaro divulga texto que vê Brasil como ‘ingovernável’ fora de ‘conchavos políticos’

Daniel Gullino, Karla Gamba, Gustavo Schmitt e Tiago Aguiar / Globo

Prestes a completar cinco meses de governo sob o risco de não conseguir aprovar no Congresso a medida provisória que reduz ministérios e reorganiza o Executivo, o presidente Jair Bolsonaro divulgou ontem um texto em que o Brasil é descrito como um país “ingovernável” fora dos “conchavos políticos”. O artigo foi escrito pelo servidor público Paulo Portinho, que trabalha na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Ao compartilhá-lo com seus contatos no WhatsApp na manhã de ontem, como revelou o jornal “O Estado de S.Paulo”, Bolsonaro comentou que tratava-se de “um texto no mínimo interessante e que a “sua leitura é obrigatória”.

Endossado pelo presidente, o texto apresenta um tom de desabafo sobre as dificuldades de se conseguir governar, e encerra com a preocupação de que o governo seja “desidratado até morrer de inanição". A ideia principal é que Bolsonaro sofre resistência de “corporações”, e que o Congresso o impede de aprovar medidas.

Nas últimas duas semanas, sucessivas alianças do centrão com a oposição têm resultado em derrotas do governo no Congresso. O ministro Sergio Moro, da Justiça, não conseguiu, por ora, impedir a transferência do Conselho de Controle de Controle Atividades Financeiras (Coaf) de sua pasta para a Economia, no exemplo mais recente.

“Descobrimos que não existe nenhum compromisso de campanha que pode ser cumprido sem que as corporações deem suas bênçãos. (...) Nem uma simples redução do número de ministérios pode ser feita. Corremos o risco de uma MP caducar e o Brasil ser obrigado a ter 29 ministérios”, diz um trecho do texto, sobre a MP que terá que ser votada até 3 de junho para não perder a validade.

Outras passagens do texto expressam incômodo com os limites dados pelo Congresso e o Judiciário ao poder Executivo. Recentemente, áreas técnicas da Câmara e do Senado sinalizaram que é inconstitucional o decreto de Bolsonaro que amplia o porte de armas, uma das principais bandeiras de campanha do presidente. Além disso, o Ministério Público Federal entrou com ação na Justiça para derrubar a medida.

“Que poder, de fato, tem o presidente do Brasil? Até o momento, como todas as suas ações foram ou serão questionadas no Congresso e na Justiça, apostaria que o presidente não serve para nada, exceto para organizar o governo no interesse das corporações”, diz o texto.

Ao detalhar quais seriam essas corporações, o texto cita “não só políticos, mas servidores-sindicalistas, sindicalistas de toga e grupos empresariais bem posicionados nas teias de poder. Verdadeiros donos do orçamento”. Se a classe política, representada pelo Congresso, é o objeto central da publicação, há também referências críticas ao Judiciário e mesmo aos militares, que não teriam “interesse” na agenda do presidente.

REFERÊNCIA AOS MILITARES
Na campanha eleitoral, a principal bandeira de Bolsonaro na área política foi se posicionar como um opositor à “velha política”, que se caracterizaria pelo loteamento de cargos do governo em troca de apoio no Parlamento. Ao formar seu ministério, o presidente não entregou pastas a caciques partidários. A estratégia, no entanto, é alvo de críticas no Congresso. Ao avalizar o texto por Whatsapp, Bolsonaro se queixa da constatação de analistas políticos de que ainda não foi capaz de formar uma base:

“Se não negocia como Congresso, é amador e não sabe fazer política. Se negocia, sucumbiu à velha política. Oque resta, se 100% dos caminhos estão errados na visão dos ‘ana (lfabe)listas’ políticos?”.

O Supremo Tribunal Federal, um dos alvos preferenciais da militância bolsonarista nas redes sociais, também é citado negativamente. O texto se refere a uma compra que seria feita pelo Supremo —as “lagostas do STF e os espumantes com quatro prêmios internacionais” — para atacar um suposto “absolutismo orçamentário” da Corte. Os ataques virtuais ao STF motivaram um inquérito aberto pelo presidente da Corte, Dias Toffoli.

A parte referente aos militares diz que “a agenda de Bolsonaro não é do interesse de praticamente nenhuma corporação (pelo jeito nem dos militares)”. Nas últimas semanas, militares do primeiro escalão, como o ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz, foram alvos de críticas de um dos filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro. O fim do texto apresenta previsões pessimistas para o futuro do país:

“Na hipótese mais provável, o governo será desidratado até morrer de inanição, com vitória para as corporações. (...) Na pior hipótese ficamos ingovernáveis (...), teremos um orçamento destruído, aumentando o desemprego e a inflação”.

O tom mais catastrofista do artigo fez o meio político comparar as palavras endossadas por Bolsonaro ao ex-presidente Jânio Quadros, que em agosto de 1961 renunciou à Presidência. Na carta de renúncia, Jânio queixou-se, de forma generalista, de ser impedido de governar por “forças terríveis”.

Para cientistas políticos ouvidos pelo GLOBO, Bolsonaro ataca as instituições para tentar se fortalecer junto a seu eleitorado:

— Vai culpar o Congresso e as instituições por tudo que não consegue fazer. Está colocando a figura dele contra as instituições democráticas e quer o apoio do povo para isso, o que é típico do populismo — afirmou o cientista político da Unicamp Oswaldo Amaral.

Para Adriano Oliveira, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a carta ataca outros poderes.

— Ele não respeita os limites que as instituições impõem no exercício da governabilidade.

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