sexta-feira, 24 de maio de 2019

*Monica De Bolle: Humanos direitos

-Época 

Poderia ter falado do Brasil de Bolsonaro, onde a resposta para todos os males é: fuzil.

Onde quer que homens e mulheres forem perseguidos por causa de sua raça, religião ou visão política, esse lugar deve, naquele exato momento, virar o centro do universo. (Elie Wiesel)

O gigante Elie Wiesel faleceu em 2016. Tive recentemente o imenso privilégio de ouvir palavras semelhantes ser proferidas pelo príncipe Zeid Ra’ad Al Hussein, da Jordânia. Al Hussein foi o alto comissário para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a ONU, até o ano passado. Foi ele quem proferiu o discurso de formatura para os mais de 400 alunos de mestrado e doutorado da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, na qual dirijo o programa de estudos latino-americanos e leciono.

O discurso foi emocionante ao destacar o momento que o mundo atravessa como único: jamais testemunhamos tantas violações dos direitos humanos sem que líderes internacionais levantem suas vozes e condenem as atrocidades, tornando esses lugares o centro do universo. O príncipe destacou as Filipinas de Rodrigo Duterte e a Hungria de Viktor Orbán em sua fala. Contudo, poderia ter falado da Turquia de Erdogan, da Rússia de Putin, da China de Xi Jinping.

O Brasil que temos hoje merece ser o centro do universo pelas razões wieselianas.

Da Declaração Universal dos Direitos do Homem — o homem como designação para o ser humano —, reproduzo abaixo os cinco primeiros artigos:

Artigo 1º: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

Pensem nesse artigo quando forem dar aquela “lacrada” no Twitter — como eu odeio essa palavra — ou quando estiverem prestes a regurgitar qualquer dos impropérios da Bolsofamília.

Artigo 2º: “Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

Opinião política ou de outra natureza, sublinhem ou usem um marcador de texto para não esquecer. Se alguém resolver conclamar manifestação para impedir seu direito de ter a posição política que bem entender — por exemplo, no próximo domingo, dia 26 de maio —, lembre-se do que acaba de ler. É seu direito ser de esquerda, defender o comunismo, o socialismo, como também é seu direito ser de direita. Seu dever é compreender que a posição do outro é tão legítima quanto a sua. Porque, no dia em que a do outro não for respeitada, pode ter certeza de que a sua tampouco será.

Artigo 3º: “Todo homem tem direito à vida, à liberdade, e à segurança pessoal”.

Não vale deturpar esse artigo para justificar o porte de armas irresponsável ou enaltecer o fuzil como resposta a todos os problemas de criminalidade enfrentados Brasil afora. O morador da favela tem o direito de não ter sua segurança ameaçada pelas metralhadoras do céu. O governador não tem o direito de mandar atirar de helicópteros à revelia — esse ato é tão criminoso quanto o do narcotraficante que pretende atingir. E mata inocentes.

Artigo 4º: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas”.

Óbvio? Nem tanto. Para as dezenas de milhões de trabalhadores que sobrevivem de subempregos, que demoram mais de cinco horas por dia para ir e vir de seus locais de trabalho, a escravidão e a servidão são reais, o retrato da desigualdade brasileira. O que se pretende fazer a respeito disso? No governo atual, nada. Mas há futuro na esperança.

Artigo 5º: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.

Ouviu, ô filhote que exalta o coronel Brilhante Ustra? Não, é claro que não ouviu. Leu, menos ainda. A tortura exaltada pela Bolsofamília não é a única forma de cometer crime contra os direitos humanos. O tratamento degradante conferido pela pobreza, pela extrema desigualdade, pelo descaso com a saúde pública e com a educação é igualmente criminoso.

Gostaria de ter escrito este artigo no dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, data de meu aniversário. Tomemos emprestado do dia 10 de dezembro o nome para o dia 26 de maio.

*Monica De Bolle diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics

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