domingo, 16 de junho de 2019

Angela Alonso: A moral do moralizador

- Ilustríssima / Folha de S. Paulo

Só não viram deslizes do herói Moro os cegos de ódio pelo vilão

“Moralmente as colchas inteiriças são tão raras! O principal é que as cores não se desmintam umas às outras —quando não possam obedecer à simetria e regularidade.” (“Quincas Borba”, capítulo 55).

O problema é quando se vende colcha moralmente monocromática que se revela bicolor. Nesta semana, o preto sóbrio da cruzada lavajatista da moral contra a política desbotou, exibindo a política cinzenta dos moralizadores.

Houve quem se espantasse. Não foram decerto os leitores de Machado de Assis, céticos das grandezas integrais e atentos às mesquinharias humanas. A figura do moralizador impoluto, que põe o interesse coletivo acima dos comichões de sucesso individual, é sempre desmascarada na ficção machadiana. Apenas opera nas narrativas maniqueístas, nas quais bem e mal são monolíticos e apartados como Deus e o Diabo.

Mas, no debate público brasileiro, Machado perdeu para a Marvel. O que mais se ouviu nos últimos anos foi a narração do triunfo da vontade da novela “A Faxina Moral da Nação”. Sua estrela: o então juiz Sergio Moro. Já faz tempo que vem na subida da rampa de sua jornada de herói. Elogio pra cá, prêmio pra lá, sucesso de livro e filme, smoking e toga. Em 2015, a revista Veja deu seu rosto na capa e, ao pé da imagem, “Ele salvou o ano!”.

Mídias tradicionais e alternativas (Mônica Bergamo lembrou os elogios de Glenn Greenwald à Lava Jato, em 2017), parcelas gordas das elites social e econômica, políticos, juristas e intelectuais trabalharam com afinco para tornar a novela moralizadora um estouro de público. A Lava Jato foi cantada em prosa, verso e série da Netflix.

No enredo, os problemas públicos todos —disfunções da gestão, má qualidade de serviços e políticas estatais, ineficiência econômica— foram reduzidos a um fator único: a corrupção sistêmica.

Ignoraram-se as causas múltiplas de processos complexos e jogos sobrepostos, com muitos atores, valores e interesses —nem todos negativos— na berlinda. É que a complexidade, sabem os roteiristas da Marvel, afasta espectadores.

Agrada aquilo que é simples: um vilão para o qual aflua o ódio coletivo. Feitos adquirem grandeza por contraste com malfeitos de mesmo quilate. A Lava Jato começou na onda antissistema “contra tudo o que está aí”, mas elegeu o antagonista principal.

A operação restringiu o perímetro da vilania no debate público, sinonimizando corrupção e petismo. O “corruPTos” estampado em cartazes de protestos e o “petralhas” de Reinaldo Azevedo viraram pragas linguísticas. O capítulo da caça ao supervilão, “chefe da quadrilha”, foi um desdobramento lógico.

O problema dos super-heróis, contudo, é que as instituições democráticas, com suas regras, burocracias, demanda por provas e presunção de inocência, retardam a punição dos malvados.

Nesta parte do enredo é que Moro cresceu. Julgou que, encarnando a moral pública, tornara-se mais legítimo que a lei, capaz de vencer bandidos que a Justiça comum seria incapaz de punir. Na luta justa, todas as armas se justificariam. Soturno e intrépido, teve a ousadia de prender um ex-presidente da República.

Moro nunca esteve sozinho. A opinião pública sagrou-o “o Justo”. Foi aplaudido no exterior —por Mario Vargas Llosa, pela Universidade de Notre Dame, pela associação de ex-alunos brasileiros de Harvard (não confundir com os professores da universidade)—, em rede e na rua, que com hashtags e cartazes delegaram-lhe superpoderes moralizadores.

Uma operação simbólica completada com os bonecões do bandido —o Pixuleco presidiário— e do mocinho —o exuberante Superman.

Agora o ex-juiz deu com o rochedo gigante do Intercept no meio do caminho. Mas nas boas narrativas do gênero, o herói enfrenta o obstáculo e o supera. O final será trágico, patético, feliz?

Até a epifania de Greenwald, a maioria do país não apenas acreditou no que Moro disse como referendou seus métodos.

A matéria apenas escancara excessos que marcaram toda a jornada. Ele considerou suspeitos como culpados sumários, prendeu antes para investigar depois, grampeou e vazou conversa entre presidente e ex-presidente da República, ato de consequência política óbvia e imediata. Apenas não viu os deslizes do herói quem estava cego de ódio pelo vilão.

Mas para fãs, os fins sempre justificam os meios. A hashtag #EuApoioaLavaJato levantada contra a #VazaJato mostrou que os superpoderes de Moro não se esvaneceram no contato com a primeira dose de criptonita. E o Superman pode sempre contar com a solidariedade dos demais Superamigos.

*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

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