quinta-feira, 6 de junho de 2019

Sem noção: Editorial / Folha de S. Paulo

Bolsonaro atenta contra evidências empíricas ao tentar mudar regras de trânsito

Em um país cujo trânsito figura entre os mais violentos do mundo, é chocante ver o presidente da República empenhando-se na defesa de políticas que tendem antes a aumentar que a diminuir a quantidade de acidentes em ruas e estradas.

Assim age Jair Bolsonaro (PSL), como se ainda fosse um deputado de causas nanicas. Na terça (4), seu governo apresentou ao Congresso projeto de lei que modifica, sem justificativa razoável, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

No conjunto, as alterações propostas vão na contramão do que recomenda a literatura especializada e o exemplo de países desenvolvidos —aumentam a tolerância com o motorista infrator, relaxam normas e acabam com sanções.

Não bastasse estimular a imprudência no trânsito, o mandatário ainda fez questão de levar o projeto pessoalmente ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

“Depois reclamam quando digo que o presidente Bolsonaro não tem noção de prioridade”, reagiu o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), presidente da comissão da reforma da Previdência —o projeto mais importante de imediato para o sucesso do atual governo.

Dentre as temeridades do texto proposto pelo Executivo consta a ampliação, de 20 para 40, do limite de pontos por multas que leva à suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

Com a justificativa pueril de que “alcançar 20 pontos está cada dia mais comum na conjuntura brasileira”, o projeto mal disfarça o intento de agradar aos caminhoneiros, categoria que se destaca entre as bases bolsonaristas.

Na mesma linha vai a ideia de eliminar a obrigatoriedade do teste toxicológico para habilitação e renovação de CNHs de profissionais.

Se tais medidas ao menos seguem alguma lógica política ou populista, beira o incompreensível a propositura de eliminar sanções para quem desrespeita regras de transporte de crianças em automóveis.

O tema é hoje regulado por resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), segundo a qual tais casos constituem infração gravíssima, sujeita a multa mínima de R$ 293,47, perda de sete pontos na carteira e retenção do veículo.

Em decisão recente, no entanto, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o Contran não tem o poder de estabelecer sanções. O projeto de Bolsonaro incorpora normas como a obrigatoriedade de cadeirinhas, mas substitui as punições por uma advertência por escrito.

O presidente já vinha atentando contra a segurança do trânsito brasileiro, que em 2016 tirou nada menos de 37 mil vidas. A pretexto de combater a “indústria da multa”, o governo cancelou a renovação de radares fixos nas estradas federais; fala-se mesmo em extinguir as lombadas eletrônicas.

Não se trata, decerto, da única área em que o governo atenta contra o conhecimento e as evidências empíricas. Esse experimento está entre os mais perigosos, porém.

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