segunda-feira, 24 de junho de 2019

Sergio Lamucci: O setor público sai de cena

- Valor Econômico

Contenção do gasto público abre espaço para juro bem menor

Num país marcado por décadas de grande peso do Estado na economia, o setor público tem saído de cena. Com a grave crise fiscal da União e de grande parte dos Estados e municípios, os gastos dessas três esferas de governo estão contidos, e tendem a continuar assim por um período considerável. Além disso, os bancos públicos se retraem, segurando o crédito. Com essa transformação, abre-se espaço para juros e inflação estruturalmente mais baixos, num cenário em que o setor privado terá de liderar o crescimento.

Essa transição, porém, ainda não ocorreu. Hoje, a mudança significativa no comportamento dos gastos e do crédito público é um dos motivos para explicar a lenta recuperação da economia. Os juros, tudo indica, precisam cair mais, num momento em que o setor privado ainda não puxa a atividade. Empresas e famílias se mantêm cautelosas, por causa das incertezas quanto ao futuro das contas públicas, do excesso de ociosidade, da fraqueza no mercado de trabalho e da insuficiência de demanda.

O economista-chefe da corretora Tullett Prebon, Fernando Montero, ressalta desde meados de 2016 que o espaço para a queda dos juros é muito expressivo, dado o novo comportamento das despesas governamentais e dos bancos públicos. Segundo ele, as despesas não financeiras de União, Estados e municípios, o equivalente a um terço dos gastos na economia, e os empréstimos dos bancos públicos (responsáveis por metade do crédito) estão contidos desde 2015.

Há restrições na economia por todos os lados, diz Montero. Os spreads (a diferença entre o custo de captação dos bancos e as taxas cobradas nos financiamentos) do crédito com recursos livres seguem elevados e o setor externo não puxa a demanda - o quadro é menos favorável para os preços de commodities e um mercado importante para produtos manufaturados brasileiros está em crise, caso da Argentina.

Montero nota que o setor privado local, "pela primeira vez incumbido de recuperar sozinho a economia, precisa antes recuperar-se". No caso da produção, lembra ele, existe uma enorme ociosidade. No mercado de trabalho, há o desemprego elevado e a precarização. Em relação às expectativas de empresários e consumidores, é preciso diminuir a incerteza - o que uma reforma da Previdência razoavelmente robusta deve ajudar a conseguir, por melhorar a percepção de risco das contas públicas. No caso do mercado de crédito, por fim, existe o obstáculo das dívidas e dos spreads altos. Para completar, a queda da inflação, o barateamento dos alimentos e algumas injeções de renda (como a liberação dos recursos das contas inativas do FGTS) já deram a sua contribuição há algum tempo, avalia ele.

É um cenário propício a juros menores, ainda mais com a perspectiva de um andamento mais favorável da reforma da Previdência. Para Montero, o Banco Central (BC) deverá voltar a cortar os juros na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), no fim de julho, levando a Selic dos atuais 6,5% para 5,25% ao ano em dezembro. "O encaminhamento das reformas, que vemos razoável, abre esse espaço que realimentará o ajuste. Num cenário de andamento mais seguro das reformas, o viés é para menos juros no fim deste ano."

Num quadro em que o encaminhamento da reforma da Previdência "preserva o cenário de solvência fiscal, nossos juros ajudam a resolver a demanda fraca e a demanda fraca ajuda a resolver nossos juros", escreve Montero, ex-secretário-adjunto de Política Econômica da Fazenda. "A sinalização das reformas precisa transformar um problema (demanda fraca) numa solução (juros menores)."

Montero destaca ainda o efeito positivo sobre a dinâmica da dívida pública do cenário que antevê para a política monetária. Juros menores incidirão sobre o endividamento do governo, ao mesmo tempo em que tendem a contribuir para a aceleração da economia, engordando o valor do Produto Interno Bruto (PIB). Essa dinâmica mais favorável "pode dobrar o impacto da reforma" sobre a relação entre a dívida e o PIB, diz ele. Desde o fim de 2013, o endividamento bruto subiu de 51,5% do PIB para os 78,8% do PIB de abril deste ano.

Para Montero, aprovada uma reforma da Previdência "minimamente necessária", num ambiente externo que poderá ter muita liquidez, dada a perspectiva para a política monetária nos países desenvolvidos, os juros por aqui terão que ser mais baixos "para segurar câmbio, inflação e atividade". Ou seja, num cenário em que parece factível a combinação de câmbio mais valorizado, inflação bastante baixa e economia fraca, há espaço para juros consideravelmente menores - e tudo isso num ambiente novo, que tem como pano de fundo a contenção do os gastos e do crédito públicos. Para ter uma ideia, de 1998 a 2015 as despesas não financeiras da União cresceram a uma média de 6,1% acima da inflação; já de 2016 a 2019 a média anual deve ser uma queda de 0,2% em termos reais, nas contas do Bradesco.

No momento, a mudança radical na atuação do governo na economia é uma das explicações para a fraqueza da atividade, num quadro de insuficiência crônica de demanda, em que o consumo das famílias, o investimento e as exportações têm um desempenho desanimador. A reforma da Previdência e outras medidas no front fiscal são importantes para assegurar que os juros fiquem baixos de modo sustentado, além de abrir espaço para alguma retomada do investimento público. 

Dada a fragilidade das contas públicas, é irrealista esperar que os governos voltarão a investir pesadamente nos próximos anos. Caberá sem dúvida ao setor privado puxar o investimento, o que torna fundamental a aceleração do programa de concessões de infraestrutura. No entanto, os valores investidos pelo setor público caíram de tal maneira que é necessário alguma recomposição da capacidade de investimento da União, Estados e municípios - 2018, por exemplo, foi o terceiro ano consecutivo em que essas três esferas de governo não gastaram nem mesmo o suficiente para cobrir a depreciação do estoque de capital público, segundo o Tesouro. Reformar a Previdência, conter gastos com o funcionalismo e reduzir a rigidez orçamentária são essenciais para dar ao setor público algum fôlego para investir um pouco mais.

Isso não vai alterar, contudo, a nova configuração da economia. O governo deverá continuar a ter uma atuação bem mais discreta, enquanto o setor privado terá de ser o protagonista - num ambiente de juros estruturalmente mais baixos, se o ajuste fiscal de fato vingar.

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