terça-feira, 30 de julho de 2019

Andrea Jubé: "Black Mirror" brasileiro

- Valor Econômico

Investigação dos 'hackers' vai parar na CPMI das 'fake news'

Trocaram os roteiristas. Após três anos de política nacional inspirada em "House of Cards" - lembrando que até a "The Economist" equiparou Eduardo Cunha a Frank Underwood - os atores políticos agora parecem transitar em um episódio de "Black Mirror", protagonizado por hackers de Araraquara (a terra do suco de laranja), incluindo um falsário e um ex-DJ, que movimentaram carteiras de criptomoedas e teriam invadido mais de mil telefones de autoridades das três esferas de poder.

A antológica série de ficção científica britânica explora situações comezinhas do cotidiano levadas ao extremo pela ação da tecnologia. Em um dos episódios, um hacker ameaça divulgar um vídeo íntimo de um adolescente. Acuado, o jovem tem de assaltar um banco e lutar pela vida em uma floresta contra outra vítima do criminoso, enquanto são filmados por um drone. Um roteiro quase ingênuo perto do enredo brasileiro.

Em meio à revelação de diálogos privados entre o hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, e o procurador da República Deltan Dallagnol - cujo teor sugere a eventual violação do princípio da imparcialidade no julgamento de processos da Lava-Jato - a investigação da Polícia Federal culminou na prisão de uma quadrilha de estelionatários do interior de São Paulo.

Um dos cenários é a cidade de Araraquarara, sede da Cutrale, que detém um terço do mercado mundial de suco de laranja. A fruta remete a outra investigação da Polícia Federal, que envolve o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio e o PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, em supostos desvios de recursos para financiamento de candidaturas falsas.

O depoimento do principal suspeito Walter Delgatti Neto é cinematográfico. Tudo começou, segundo ele, com a invasão ao celular de um promotor de Justiça estadual que o denunciou por "tráfico de drogas de remédios". Por meio da agenda do Telegram do promotor, o hacker acessou o número de telefone de um procurador da República e chegou ao telefone do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP). Este dado o levou ao número do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que o levou ao contato do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, que o levou ao número de Deltan Dallagnol.

O título do episódio seria "A República hackeada", ou "halckeada", porque só se fala nos "halckers" nas rodas de conversa em salões de beleza e mesas de bar. Mais de mil telefones de autoridades teriam sido invadidos, inclusive dos presidentes da República; da Câmara, Rodrigo Maia; do Senado, Davi Alcolumbre; do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, e da procuradora-geral da República, Raquel Dodge.

A ponte para o hacker chegar ao jornalista Glenn Greenwald foi a candidata derrotada à Vice-Presidência Manuela D'Ávila, cujo contato ele obteve a partir da invasão à agenda da ex-presidente Dilma Rousseff! O produto do crime foi compartilhado em arquivos de nuvens digitais. O capital financeiro da quadrilha está em "bitcoins". Mais "Black Mirror", impossível.

Com o fim do recesso legislativo, o assunto vai parar na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos crimes cibernéticos e das "fake news", que o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre - uma das vítimas dos hackers - instala nos próximos dias.

O líder do PL, deputado Wellington Roberto (PB), já prevê requerimentos de convites, convocações, compartilhamento de informações, em especial num cenário em que até um integrante da Casa, o deputado Kim Kataguiri, foi vítima do hacker, segundo o depoimento do investigado aos policiais federais.

A avaliação entre os líderes do parlamento, até o momento, é de que a prisão dos suspeitos é um capítulo relevante da investigação sobre a invasão aos celulares de autoridades da República. Mas eles enumeram pontas soltas da história que a CPI mista deverá investigar. Os diálogos publicados pela imprensa são autênticos ou foram editados? Podem levar à anulação de processos da Lava-Jato? O ministro da Justiça pode determinar a destruição das provas? A quadrilha foi financiada, negociou a venda do produto do crime? Quem mais foi hackeado ou teve o celular na lista dos suspeitos?

A urgência dos fatos levará Alcolumbre e Rodrigo Maia a arbitrarem nos próximos dias o embate pela relatoria da CPMI, que o PT quer transformar em ringue contra o governo Bolsonaro por causa da investigação sobre a disseminação de "fake news" na campanha eleitoral em andamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Antes do recesso, o arranjo previa a indicação do presidente da CPMI na cota de Alcolumbre, enquanto os líderes da Câmara indicariam o relator. Senadores a par das negociações citam três nomes da confiança de Alcolumbre para a presidência: os senadores Rodrigo Pacheco (DEM-MG), Roberto Rocha (PSDB-MA) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE).

Na Câmara, Maia prometeu ao líder do PT, Paulo Pimenta (RS), a vaga de relator para a bancada. Mas líderes do Centrão não querem um petista na relatoria dos trabalhos, porque poderia comprometer a credibilidade dos trabalhos. A ideia é escolher um relator de perfil independente. A quem caberá, fatalmente, conciliar a função na CPMI com a de co-roteirista dos próximos capítulos do novo seriado brasileiro.

'Manual do fascismo'
Em uma palestra para 400 pessoas em Brasília na última semana, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB) - que ganhou de Bolsonaro a alcunha de "pior governador" - ressaltou que reprova a ação dos hackers porque é criminosa. Mas classificou como "receituário fascista" a divulgação de que mais de mil autoridades teriam sido hackeadas pela quadrilha porque a informação dissemina o medo e o pânico na população. "Basta ler O 'Cemitério de Praga', de Umberto Eco, isso é do manual do fascismo". Ex-juiz federal que migrou para a política, Dino alertou que Sergio Moro é ministro da Justiça e não juiz do processo para ordenar a destruição de provas. Chamado de "presidenciável", ele diz que a oposição tem de sair do canto do ringue para disputar a rua.

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