domingo, 7 de julho de 2019

*Angela Alonso: Protesto a favor

- Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Manifestações domingueiras perderam o aconchego do antipetismo

“Si hay gobierno, soy contra”. O dito anarquista fez carreira no Brasil. Sempre tivemos manifestações de combate ao governo, desde a Colônia e para todos os gostos: contra governos fortes, caso de Floriano Peixoto, e fracos, como o de Prudente de Moraes; os de direita, vide Collor, e os de esquerda, qual o de Jango.

O país se vê como apático, mas é mobilizado. Há sempre quem ponha a boca no trombone. Apenas se foge da rua quando ocupá-la põe em risco o pescoço. Daí se contesta de outro jeito, caso da guerrilha no governo Médici.

Assim, é descabida a tese de que “o brasileiro acordou” para a política em 2013 —e que antes ia à rua apenas em Carnaval e Copa. A norma são manifestações “contra tudo o que está aí”. Desvio é o oximoro “protestar a favor”.

Os bolsonaristas são pródigos em invencionices, mas carecem de ineditismo no quesito. Nossa única presidente suscitou gritos de “fica” —embora na prorrogação do segundo tempo e com muitos constrangidos, dados seus slogans anteriores contra o ajuste fiscal.

A manifestação do último domingo (30) nada teve de constrangida. Faltou-lhe, ao contrário, comedimento, vide os sopapos entre manifestantes. Tabefes são rotineiramente trocados entre adversários e com a polícia. Mas o campo patriota é mestre no inusitado, como festejar com a polícia em vez de fugir dela.

Campo patriota porque os símbolos nacionais são o telhado para todos os insurgentes contra o petismo. A vantagem de ficar contra é morar numa gigante zona de conforto. Enquanto combatiam os “corruPTos”, podiam divergir sobre o resto. Unificava-os o inimigo comum.

NasRuas, MBL, Vem Pra Rua, estrelas das manifestações domingueiras, consolidaram protagonismo na campanha pela derrubada de Dilma e seguem coordenando eventos multitudinários. Uns maiores, outros menores, mas longe de desprezíveis. Mas protagonismo e comando são coisas diferentes.

Para fazer volume, contaram, e muito, com colaboração. Valeram-se da alavanca dos protestos grandes: a aliança com associações civis e redes de sociabilidade, antes sem propósito político, mas enraizadas na sociedade.

Atraíram igrejas neopentecostais, associações de empresários, militares, policiais, agentes de segurança privada e de profissionais liberais de velhas profissões (engenheiros, médicos, advogados, publicitários, jornalistas). Vieram também adesões avulsas das novas ocupações técnicas, de modelagem de corpos, tecnologias de informação, planejamento estratégico, marketing digital.

Aglomerações em metrópoles e cidadezinhas não brotaram da magia do WhatsApp. Desde o Fora Dilma, essas redes e associações fazem a persuasão boca a boca, com sua eficiência de costume.

Movimentos pequenos, locais, abrangem perímetro curto, mas têm raiz funda em seus nichos. Campanhas robustas requisitam essa capilaridade. Os movimentos nacionais formaram amplas redes de ativismo porque se engataram à variedade dos pequenos. Mas nunca tiveram controle sobre tais aderentes.

Um efeito colateral de protestar é que se pode obter o reivindicado. Impedida uma, preso outro, presidente um dos seus, ministros outros, o que resta de comum ao extenso campo patriota, além do hino nacional?

Os protestos domingueiros perderam o aconchego do antipetismo. Para sobreviver, os movimentos maiores lançaram novas bandeiras. Mas os miúdos têm as próprias. Ainda no governo Dilma, a diferenciação entre patriotas em subcampos liberal, conservador e autoritário assomou, mas abafou-a o objetivo comum.

Agora eclodiu. Grupos liberais e conservadores, que aceitam a democracia, não têm como expulsar da sombra do manto verde-amarelo os autoritários, com seus cartazes pró-intervenção militar, que antes acolheram na primavera antidilmista.

Os movimentos antidemocráticos aí estão, ostensivos, multiplicando-se, com suas armas de fora. Antes ajudaram e agora assustam os que os tiraram do porão da história.

Em vídeo pós-protesto de domingo, um ativista reclamou do ataque físico a membros do MBL, perpetrado pelo Movimento Direita São Paulo. E espantou-se com a violência.

Espantoso é que se espante. Afinal, foram os movimentos liberais, como o MBL, que trouxeram os autoritários para passear na avenida Paulista. Não temeram seus rosnados quando estavam todos atados no antipetismo.

O medo emergiu com a mordida na mão que os alimentou. São bem-vindos ao terreno dos amedrontados com a violência política, mas cabe a quem soltou antes os pitbulls pôr-lhes agora a focinheira.

*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

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