segunda-feira, 22 de julho de 2019

Denis Lerrer Rosenfield*: Privilegiados, uni-vos!

- O Estado de S.Paulo

Qual é o tipo de esquerda que se alinha com os privilegiados de funções públicas e abandona os que não usufruem os mesmos privilégios?

A reforma da Previdência terminou, no campo da esquerda, por provocar desalinhamentos entre os seus membros, com deputados se demarcando da posição de seus respectivos partidos, sobretudo no PSB e no PDT, com PT, PSOL e PCdoB mantendo a fidelidade de seus parlamentares. Os primeiros mostraram uma salutar desavença interna, os últimos mantiveram-se firmes em suas origens leninistas, em suas várias vertentes.

Contudo, para além do problema partidário de ordem conjuntural, com ameaças de punições e expulsões, lideradas por chefões partidários fazendo o seu teatrinho, existe uma questão de monta, concernente ao que significa ser de esquerda. Ou seja, qual é o tipo de esquerda que se alinha com os privilegiados de funções públicas e abandona os que não usufruem os mesmos privilégios? Será que a mensagem da esquerda brasileira – e para além dela – é uma mensagem particularista, corporativa?

A mensagem da esquerda, em sua vertente marxista, era efetivamente universal. Estava voltada para a emancipação da classe trabalhadora, naquele então denominada proletária, e, por intermédio dela, da humanidade. A defesa dos proletários se faria por sua libertação das amarras do capitalismo, instituindo um tipo de sociedade cuja característica central seria a igualdade em todos os níveis, sem nenhum tipo de particularismo, nem de interesse particular.

Para o presente propósito, não cabe a discussão sobre a exequibilidade ou não dessa proposta, mas tão somente ressaltar sua universalidade, sem a qual ela se torna claramente ininteligível. A contraposição principal se estabelecia em relação aos burgueses, que deveriam ser eliminados ou, em sua versão mais branda, tornados iguais. Não se tratava, na posição marxista, de defender os interesses corporativos de funcionários públicos em detrimento dos outros trabalhadores.

Em linguagem corrente: não tem cabimento político, nem moral, que os trabalhadores comuns, com ganhos pequenos, financiem o regime dos funcionários públicos, mediante aposentadorias precoces, integralidade de seus vencimentos e paridade, entre outros benefícios. Seria a própria mensagem da esquerda que estaria sendo traída, em proveito de um punhado de privilegiados, que se arvoram, hipocritamente, em defensores dos “direitos sociais”, como se fossem os direitos de todos os trabalhadores.

Os deputados rebeldes têm, dentre outros méritos, o de terem resgatado uma mensagem de cunho universal, abandonando o corporativismo e o particularismo de seus respectivos partidos. Os que não se rebelaram ficaram atados à usurpação ideológica. Pensaram eles na sociedade como um todo, não no caráter restritivo da conjuntura partidária. Partido, em sua definição, defende uma parte, porém devendo integrá-la ao interesse coletivo, sem o qual cai nas armadilhas do corporativismo e do fisiologismo.

A pauta previdenciária é uma pauta da sociedade e do Estado, não apenas dos partidos políticos. Não se trata de ser a favor ou contra o governo, mas de ser ou não a favor da coletividade, do bem maior. O cálculo meramente partidário é particular, restrito às suas lideranças e a seus interesses. Não tem nenhuma dimensão social.

Do ponto de vista da esquerda em geral, a mensagem dos rebeldes foi de renovação, de sacudida das carcaças partidárias. Pensaram no todo, e não na parte; no coletivo, e não no particular. Apesar das incompreensões de seu gesto, estão proclamando por um reposicionamento da esquerda e de seus respectivos programas.

Democracias contemporâneas dependem de uma esquerda moderna e plural. Dependem de uma esquerda que pense os desafios do mundo atual, acompanhando as enormes mudanças políticas, econômicas, sociais, culturais, tecnológicas e científicas das últimas décadas, que transformaram a face da humanidade. Pense-se no conceito marxista e positivista de proletário, para melhor aquilatarmos a grande transformação. Perdeu seu significado, quanto mais não seja, porque o mundo mudou.

O que tinha a esquerda a propor na reforma da Previdência? Além do não dogmático, voltado para a defesa dos privilegiados e de suas corporações, tinha algo a dizer? Não poderia ter apresentado uma proposta mais universal do que aquela que, após laboriosas negociações, foi finalmente aprovada em primeira votação? Não teria sido o momento de a esquerda dizer não aos privilegiados e sim aos trabalhadores em geral?

Em vez disso, optou por abandonar os trabalhadores, refugiando-se numa suposta fidelidade partidária e doutrinária. Ora, é precisamente essa doutrina que está em questão. Ela não responde ao espírito do tempo, funciona como óculos às avessas, que só vêm para dentro, retirando-se do exterior.

O PT continua firme em suas posições esquerdizantes, à sua origem leninista, apesar de seu namoro com a social-democracia no primeiro governo Lula. O PCdoB e o PSOL seguem na mesma linha dogmática. O PSB tem também um programa partidário de cunho marxistizante, cuja leitura remete a uma peça de ficção política, própria de outro tempo. O PDT, originário do antigo PTB, por sua vez, é fruto de outra concepção, oriunda do trabalhismo inglês e, nesse sentido, já não segue a orientação leninista, algo próprio, então, dos comunistas ingleses. Historicamente, correspondem ambos os partidos a uma primeira versão da social-democracia no País, embora tampouco tenham seguido o caminho da modernização. Haveria aí uma proximidade com os tucanos, com a atual social-democracia brasileira, por terem fontes comuns.

Os debates da reforma da Previdência, extremamente pobres na perspectiva das esquerdas, mostraram os impasses de uma modernização necessária, mas claudicante e já atrasada. O seu dilema poderia ser assim traduzido: O “proletários de todo o mundo, uni-vos!” tornou-se “privilegiados, uni-vos!”. Triste destino!

*Professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufgrs)

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