terça-feira, 30 de julho de 2019

Documentos desmentem versão de Bolsonaro sobre morto pela ditadura

Presidente afirmou que pai do atual dirigente da OAB sofreu ‘justiçamento da esquerda’

Jussara Soares, André de Souza e Amanda Almeida / O Globo

BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro contrariou ontem os registros de documentos oficiais ao dizer que morreu em um “justiçamento da esquerda” o militante da Ação Popular (AP) Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Dois documentos do Estado brasileiro afirmam que ele foi morto pela ditadura em 1974. O presidente da OAB afirmou que Bolsonaro demonstra “traços de caráter graves em um governante: crueldade e falta de empatia’’. O governador de São Paulo, João Doria, e a ex-senadora Marina Silva condenaram a atitude de Bolsonaro.

Enquanto cortava o cabelo em transmissão ao vivo pela internet, o presidente Jair Bolsonaro afirmou ontem que não foram os militares que mataram pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Apesar de dois documentos oficiais atestarem o contrário, Bolsonaro disse que Fernando Santa Cruz, integrante do grupo Ação Popular (AP) e desaparecido durante a ditadura militar, teria sido assassinado em um “justiçamento da esquerda” (eliminação de pessoas consideradas traidoras).

Mais cedo, ao atacar o presidente da OAB, Bolsonaro havia afirmado que, se Santa Cruz quisesse, ele poderia dizer como seu pai desapareceu. A provocação fez com que Santa Cruz decidisse interpelar Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF), após divulgar uma nota na qual chama Bolsonaro de “cruel” e “sem empatia”.

“O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia. É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão. Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro — e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos”, disse Santa Cruz, em nota.

DEFESA DOS MILITARES
Bolsonaro disse que “é muito fácil culpar os militares por tudo o que acontece”:
— Não foram os militares que mataram ele não, tá?

Segundo Bolsonaro, integrantes da AP no Rio teriam sido responsáveis pelo desaparecimento de Fernando, que pertencia ao grupo em Recife.

— E o pessoal da AP do Rio de Janeiro ficou... primeiro, ficaram estupefatos, né? Como é que pode esse cara vir do Recife se encontrar conosco aqui? O contato não seria com ele, seria coma cúpula da Ação Popular do Recife. E eles resolveram sumir como pai do Santa Cruz. Essa é a informação que eu tive na época. É sobre esse episódio. Porque, qual é a tendência? “Se ele sabe, nós não podemos ser descobertos”... Existia essa guerra naquele momento —afirmou.

Documentos enviados à Comissão da Verdade indicam que Fernando não participava diretamente da luta armada, citam apenas que ele prestava assistência aos integrantes do movimento.

Fernando, que havia se mudado para São Paulo, onde trabalhou no Departamento de Água e Energia Elétrica do estado até a véspera da prisão, estava no Rio para festejar o aniversário do irmão Marcelo. Devido ao novo endereço, ele pleiteava uma transferência da Universidade Federal Fluminense (UFF) para a Universidade de São Paulo (USP). Após rever a família, Fernando saiu às 16h para encontrar o amigo Eduardo Collier e marcou de ir ao cinema às 18h com sua mulher, Ana Lúcia Valença. Não apareceu. Era sábado de carnaval, e nunca mais se soube de Fernando e Eduardo.

Bolsonaro levantou o assunto pela manhã ao criticar a atuação da OAB no processo para apurar o atentado à faca sofrido por ele no ano passado. O agressor, Adélio Bispo de Oliveira, foi absolvido por ser doente mental e não poder ser responsabilizado criminalmente em razão disso.

— Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele.

Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar e essas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro — afirmou Bolsonaro.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), classificou como “inaceitável” a declaração de Bolsonaro:

— Não posso silenciar diante desse fato. Eu sou filho de um deputado cassado pelo golpe de 1964. Vivi o exílio com meu pai, que perdeu quase tudo na vida em dez anos de exílio pela ditadura.

No Twitter, a candidata derrotada da Rede à Presidência, Marina Silva, cobrou “compostura” de Bolsonaro. “Falta ao presidente sentido de dignidade e compostura em relação ao cargo que ocupa. Brinca comum a situação dolorosa na vida de um filho que perdeu o pai durante a ditadura. É ultrajante!”, escreveu ela.

Bolsonaro cancelou reunião marcada para a tarde de ontem com o chanceler da França, Jean-Yves Le Drian. O ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) disse que foi por “problema de agenda”. Bolsonaro apareceu, porém, cortando o cabelo.

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