domingo, 28 de julho de 2019

Dorrit Harazim: Porto Rico não é aqui

- O Globo

Governador e seu grupinho conspiravam para camuflar desvio de verbas e compartilhamento de informações reservadas

O momentoso ato desta quarta-feira foi comunicado e acompanhado em vídeo pelo Facebook, inaugurando o que talvez se torne o novo normal para futuros registros históricos do gênero. Já era quase meia-noite em Porto Rico. A nação que há duas semanas saíra às ruas, dali não arredaria pé enquanto o emparedado governador Ricardo Rosselló permanecesse no cargo. Após um interminável introito autoelogioso no aguardado discurso, ouviuse, então, a esperada frase: ...“Anuncio, com desprendimento, que estou renunciando ao cargo de governador...”.

O gesto de Rosselló foi tudo, menos desprendido. Um processo de impeachment havia sido colocado em marcha pouco antes na Câmara de Deputados em San Juan, e eram nulas as chances de o governador sair ileso do processo. “Ricky, te botamos” (Ricky, te derrubamos), resumiu um cartaz de rua.

A jornalista porto-riquenha Ana Tereza Toro chama atenção para o fato de o brasão nacional de seu país ser o mais antigo do continente (século 16) e jamais ter sido modificado, nem mesmo durante o período em que a ilha foi possessão dos Estados Unidos. Esse brasão tem ao centro a figura de um cordeiro branco, sentado, representando pureza, integridade e paz, o que acabou por consolidar uma autoimagem nacional de nobre passividade e aceitação do destino. “A nossa história, seus golpes, feridas e reviravoltas, havia amortecido o verdadeiro animal social que somos, e que dormiu uma noite longa”, escreveu Toro no “New York Times”. Sua conclusão: a partir de agora, Porto Rico deixa de ser este país dócil que aceita o que lhe é dado.

Como se sabe, o detonador do despertar de agora foi o vazamento de 889 páginas de chats criptografados envolvendo o governador e 11 pessoas de seu círculo mais próximo. A decisão e a responsabilidade de divulgar a íntegra desse material politicamente demolidor foram de uma pequena mas perseverante equipe local, o Centro de Jornalismo Investigativo. Até agora, ninguém em Porto Rico — nem mesmo quem perdeu o cargo ou está sendo investigado em consequência das revelações — acusa a divulgação de ser “ilegal”. No máximo, ela é “incorreta”, como tenta sustentar a secretária de Justiça, Wanda Vázquez, segunda na linha de sucessão, cuja folha corrida de malfeitos agora aflora e alimenta as redes de protesto. “Melhor nem escolher a roupa, pois não vais”, alerta um post na hashtag #WandaLeaks. Pela Constituição, o primeiro na fila sucessória seria o ocupante da Secretaria de Estado, mas o titular ejetou-se do cargo logo após o vazamento dos chats por ser um dos integrantes do malfadado grupo.

O que fez tantos porto-riquenhos adotarem uma tomada de posição comum, acima de suas históricas divergências sobre o status de território dos Estados Unidos x independência plena x sua transformação em Estado americano? Quinhentos mil manifestantes ocupando as ruas, dias a fio, num país cuja população ultrapassa em pouco os três milhões, equivaleria, no Brasil de 210 milhões de habitantes, a 35 milhões saírem de casa para manifestar — não para votar em dia de eleição, para se manifestar em repulsa a algo que precisa ser consertado de urgência.

Em Porto Rico, foram duas as gerações que se mobilizaram de forma espontânea: os millenials, que se tornaram adultos quando o país entrou em crise fiscal e quebradeira geral, e a geração Z, nascida num pais já atolado, que nunca conheceu a bonança nem instituições livres de corrupção. Testemunharam, junto aos pais e avós, o devastador furacão Maria de 2017, durante o qual a nação entrou em desesperança, e que deixou mais de três mil mortos. Enquanto essa população se esfolava no amargo deserto assistencial, os vazamentos mostraram que o governador e seu grupinho conspiravam para camuflar a extensão da tragédia, o desvio de verbas, o compartilhamento de informações reservadas. Talvez tenha sido o tom ligeirinho, de desprezo, cinismo e despudor pelo que é certo, que entornou o imobilismo daquele cordeiro de brasão.

Cada geração tem momentos cruciais para chamar de seus. Cada país, também.

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