domingo, 21 de julho de 2019

Dorrit Harazim: Selfie de uma nação

- O Globo

Trump percebeu em deputadas potencial para o papel de inimigas oficiais dos EUA, indispensável à sua campanha de reeleição movida a ódio

Mais de um século atrás, o monumental “Nascimento de uma Nação”, de D.W. Griffith, épico do cinema mudo que inspirou a criação da Ku Klux Klan nos Estados Unidos, moldou apercepção identitária do país em 1915. Primeiro filme a ser exibido na Casa Branca para o então presidente Woodrow Wilson, o clássico até hoje vilipendiado e cultuado foi um estrondoso sucesso de bilheteria. Tem três horas de duração.

O retrato da mesma nação em versão 2019 é uma selfie de 13 segundos. Produzida esta semana durante um comício de Donald Trump na Carolina do Norte, a selfie sonora mostra o mantra nativista que brota no ginásio de uma universidade local, sob olhar impávido do presidente-candidato: “Send her back, send her back!”. Traduzido para o português (“mande-a embora”), o refrão não tem força nem ritmo.

Cantado em inglês e em cadência hipnótica, porém, “Send her back!” adquire a potência mobilizadora de um “We Will Rock You”. Só que, ao contrário do sublime canto à liberdade criado por Freddie Mercuryea banda Que en, og rito produzido por patriotas da nação Trump conduz à supremacia da intolerância.

No caso, clamava-se pela expulsão do país de uma combativa deputada muçulmana, Ilhan Omar, cidadã americana vinda quando criança da Somália e eleita em 2018 pelo estado do Minnesota.

Já não importa se o explícito despertar dessa terra em transe nacionalista deriva da retórica do presidente, ou se é a nação americana branca e cristã que desperta no mandatário apetites políticos cada vez maiores. São vasos comunicantes que precisam um do outro para sobreviver. O episódio desta semana talvez venha a ser estudado como marco zero, ou ponto de não retorno da era Trump.

Junto a três outras congressistas estreantes — Alexandria Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib e Ayanna Pressley — a deputada Omar forma o
chamado “esquadrão” à esquerda do Partido Democrata, cuja agenda ultra progressista inclui a abertura de um processo de impeachment do ocupante da Casa Branca. Trump percebeu nelas potencial para o papel de inimigas oficiais dos Estados Unidos, indispensável à sua campanha de reeleição movida a ódio.

Só que o roteiro saiu um pouco dos trilhos. Referindo-se ao insolente quarteto democraticamente eleito — todas mulheres, não brancas, três delas americanas de nascimento —Trump tuitou:

“Curioso ver essas parlamentares ‘progressistas’ vindas de países cujos governos são os mais corruptos e ineptos do mundo ... dizer ... a opo vodos Estados Unidos, a melhore mais poderosa nação, como nosso governo deve ser conduzido. Porque elas não voltam de onde vieram e ajudam a resolver os problemas daqueles lugares quebrados e infestados de crime. ..?.” Por feroz, explícito e primitivo demais, o “Send her back!” da soldadesca ecoou mal até junto a republicanos rombudos, levando Trumpa manifestar um simulado distanciamento pós fac todo ocorrido. Mas o destape fora feito. O discurso idealizado por gerações de americanos segundo o qual a tosco moeste“não refletem o que somos” já havia sido desossado pelo próprio líder danação.

Concidadãos de outra cor, crença ou opinião são o inimigo. Vale refletir sobre a avaliação da atualidade feita pelo conservador George Will, Prêmio Pulitzer e respeitadíssimo observador da cena americana. Em entrevista ao “New York Times”, o veterano jornalista e escritor definiu assim o significado de Trump para a história política de seu país: “Ninguém pode desfazer esse tocar de sinos, ninguém pode desdizer o que foi dito, e ninguém pode mudar o que num curto espaço de tempo tornou-se um permanente jorrar de mentiras e insultos...

Penso que os danos serão mais permanentes do que os malfeitos de Richard Nixon”, disse Will. Considerando-se que o autor desta afirmação não é integrante de nenhum “esquadrão” antipatriótico, a afirmação teve o mereci dope soem meio à grita geral.

O que Trump faz, já fez ou ainda fará na Casa Branca seria mais destrutivo do que os atos de um antecessor que gerou o caso Watergate, foi forçado a renunciar para escapar de impeachment, e jogou o país numa orfandade moral?

Sim, explica Will. Os atos de Nixon foram secretos, e ele tentou acobertá-los através de novos atos clandestinos. Mas uma vez descoberto, recebeu condenação nacional.

Trump, ao contrário, faz da violação explícita de normas e decência a sua plataforma de poder, às vistas da opinião pública. Enquanto Nixon conhecia as leis e usou de todos os artifícios para delas escapulir, Trump não as teme, as despreza. E está determinado a mudá-las. O (re)nascimento de uma nação pré Trump não está à vista, nem na remota hipótese de uma vitória democrata em 2020.

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