sexta-feira, 12 de julho de 2019

*Fernando Abrucio: Integração com o mundo vai além da economia

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O que bolsonarismo ainda não descobriu são os benefícios do diálogo e do intercâmbio de ideias, inclusive com aqueles que têm visões de mundo diferentes

É uma ótima notícia para o Brasil a possibilidade de acordo entre a União Europeia e o Mercosul. O país poderá ter uma série de ganhos econômicos caso consiga preparar bem sua economia - e aqui há muito trabalho. Mas esse casamento traz outro benefício: ele nos levará, de forma espontânea ou forçada, a dialogar mais com o mundo desenvolvido e com suas boas práticas de políticas públicas. A experiência internacional não trará respostas mágicas, mas é um antídoto contra velhos e novos provincianismos.

Antes de mais nada é preciso realçar que o acordo ainda não foi completamente fechado. Para isso, ele passará por várias etapas na União Europeia, inclusive a votação em cada Parlamento nacional. Ao longo desse périplo, muitas exigências serão feitas em relação às políticas públicas dos países do Mercosul. Temas como meio ambiente, direitos humanos, observância de regras trabalhistas, entre os principais, serão colocados em questão se o Brasil não cumprir uma agenda básica. E não adianta fazer discursos nacionalistas para a plateia: o governo terá que se adaptar às exigências europeias se quiser efetivamente um acordo comercial.

A alternativa ao dialogo é o confronto e a autoafirmação nacionalista. Por essa via não haverá nenhum acordo entre Mercosul e União Europeia. O plano da equipe econômica de abrir mais a economia fracassará se não tivermos contrapartidas dos outros, algo que virá sobretudo de pactos bilaterais ou multilaterais. Além disso, só teremos maiores benefícios desses acordos se o país fizer sua lição de casa, o que envolve modernizar a estrutura econômica, em campos como legislação de negócios, investimentos em infraestrutura, melhoria da educação etc. E para fazer tais aperfeiçoamentos, será de grande valia observar mais o que foi feito noutras nações, procurando boas práticas em políticas públicas e modelos de desenvolvimento.

Assim, aquilo que muitos no governo veem como limitação à soberania, particularmente o grupo que diz odiar o tal globalismo (incluindo o próprio presidente), pode se transformar num caminho de diálogo sobre as políticas públicas. Os benefícios de acordos comerciais podem ir além da economia.

Por exemplo, há uma expectativa muito grande do mundo, especialmente dos europeus, acerca das ações ambientais do Brasil. Obviamente que haverá algum grau de conflito entre as partes, mas se governo brasileiro parar de acreditar em discursos sem base científica, poderá adotar melhores políticas de proteção do meio ambiente, com técnicas e programas mais efetivos para a redução do desmatamento ou para criar um desenvolvimento sustentável que crie renda para as pessoas que vivem na floresta.

Esse aprendizado derivado do diálogo internacional pode afetar positivamente outras áreas, nas quais predominam hoje um discurso no governo Bolsonaro que está bem longe das boas práticas internacionais. Pegue-se o exemplo da educação. Questões como a escola sem partido, militarização das escolas ou "homeschooling" não são medidas adotadas pelos países mais bem colocados no exame do PISA ("Programme for International Student Assessment"), o mais importante para avaliar a educação básica no mundo. Em vez de adotar essa agenda provinciana e exótica (para dizer o mínimo), o Brasil deveria aumentar o intercâmbio internacional para conhecer modelos adequados à política educacional.

Basta ler os relatórios da OCDE, outra entidade internacional que o Brasil pleiteia participar, para ver que a reforma educacional depende de melhoria da formação e carreira do professor, de modelos colaborativos de aprendizagem dentro e entre escolas, de métodos inovadores de ensino que deem maior protagonismo aos alunos, tornando-os sujeitos críticos e autônomos em seu aprendizado. Essa última definição parece ter vinda de livros de Paulo Freire, mas o que se pode dizer, com base na observação empírica, que é exatamente essa a proposta adotada por nações como Finlândia, Cingapura, Canadá, Portugal e, aqui na nossa vizinhança, o Chile, países que se tornaram referência no plano internacional.

Os países desenvolvidos no mundo acreditam que a educação é única via para melhorar a vida das crianças e adolescentes. Não se pode, neste sentido, fazer um elogio aberto ao trabalho infantil, como fez o presidente Bolsonaro recentemente. Primeiro porque esse discurso é errado cientificamente. As nações se desenvolveram porque colocaram seus jovens na escola por mais tempo, e isso que produziu a qualidade do seu capital humano. Menos tempo de escolaridade ou dentro de instituições escolares significa, em termos intertemporais, menor produtividade e, consequentemente, menos desenvolvimento econômico.

Citar casos de empresários ou pessoas bem-sucedidas economicamente que trabalharam em tenra idade como exemplo é não saber matemática, pois, no agregado, a maior parte daqueles que, logo cedo, participaram de colheitas, venderam produtos na rua ou fizeram coisas semelhantes, tiveram um destino econômico individual pior do que aqueles que estudaram mais. Além disso, no conjunto, quanto mais gente trabalhar na infância num determinado país, menor a chance de desenvolver seu capital humano, peça-chave no desenvolvimento econômico e social.

O presidente Bolsonaro não percebe a contradição de assinar acordos comerciais internacionais e falar que o trabalho infantil não é tão ruim assim - na verdade, pode ser até instrutivo, na visão bolsonarista. Falas como essa vão atrair os holofotes internacionais para vasculhar as condições de trabalho no Brasil. E sabemos que, infelizmente, ainda temos trabalho escravo e infantil em nosso território, algo que pode nos fechar as portas do comércio internacional e dos consumidores europeus.

Citando mais outra área de política pública, pode-se aprender ainda com as políticas feitas mais recentemente por países desenvolvidos como Suécia, Austrália e Nova Zelândia para suas populações autóctones. As tradições culturais desses grupos foram preservadas. Se no passado eles eram vistos como um obstáculo ao desenvolvimento da nação, hoje são vistos como parte integrante de um projeto que pode ter mais de um modelo de inserção econômica das pessoas.

Nesse sentido, todo o discurso bolsonarista em prol de mais investimentos de mineradoras em terras indígenas será muito malvisto no plano internacional e, o pior de tudo, não resolverá nossos problemas econômicos. O presidente Bolsonaro precisa ser apresentado à literatura sobre a maldição dos recursos naturais, que obviamente é bem conhecida pelos membros de sua equipe econômica. Não vale a pena explorar territórios naturais a qualquer custo, seja contra o meio ambiente, seja contra os índios. Será uma ilusão com efeitos perversos, algo que já ocorrera no regime militar. Só que agora seremos punidos no plano internacional se seguirmos nessa toada.

Haveria muitos outros exemplos de políticas públicas com as quais o Brasil poderia aprender pela via do intercâmbio internacional proporcionado pela entrada na OCDE ou pelo acordo com a União Europeia. Mas também teremos de aprender com o "modus operandi" da política democrática no mundo desenvolvido, em especial a participação cada vez maior das entidades da sociedade civil na cobrança e influência sobre as decisões governamentais. Como vem dizendo desde o início do mandato, o governo Bolsonaro tem se colocado como refratário às ONGs e ao que chama de ativismos. Essa postura, no entanto, traz dois grandes problemas do ponto de vista da integração internacional.

O primeiro é que as ONGs internacionais têm muito peso sobre a política dos principais países desenvolvidos. Colocar-se numa cruzada total contra elas significa ter mais dificuldades em acordos e relacionamentos com tais nações. O Brasil não deve se mirar em lugares como as Filipinas, a Hungria ou países autoritários do Oriente Médio, entrando nesse pequeno grupo que opta por um isolamento internacional voluntário. Mesmo sendo relevante econômica e politicamente, não somos a Rússia, muito menos a China, e gostem ou não os bolsonaristas, parecemos mais em termos sociais, culturais e institucionais com o Ocidente europeu e americano.

Isso não significa concordar com tudo que as ONGs internacionais dizem sobre o Brasil. Mas a soberania não é o contrário da integração e do diálogo internacional. E aqui entra o segundo problema dessa postura: poderíamos aprender muito por meio do contato com essas instituições, sobretudo se agregarmos os similares nacionais nesse processo. Nas áreas ambiental e educacional, para ficar somente em dois exemplos, há muita gente qualificada em termos de diagnóstico e capacidade de mobilização, coisas que podem ser benéficas para o sucesso das políticas públicas do governo federal.

O que bolsonarismo ainda não descobriu são os benefícios do dialogo e do intercâmbio de ideias, com os atores internacionais ou nacionais, inclusive com aqueles que eventualmente tenham visões de mundo diferentes. Tão importante quanto economias abertas são sociedades abertas e plurais. O modelo polarizado e isolacionista - "só converso com quem concorda comigo" - do bolsonarismo reduzirá a qualidades das políticas públicas do país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

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