domingo, 28 de julho de 2019

Livro entrevista líderes de transições democráticas pelo mundo

Passagem de regimes autoritários para a democracia é analisada no Brasil, Chile, Espanha, México, Polônia e África do Sul

Elias Thomé Saliba*, Especial para o Estado / Aliás

Como a Democracia Chega ao Fim, Como as Demcracias Morrem,O Povo Contra a Democracia,Democracia em Risco? – basta um rápido olhar para os títulos de alguns dos últimos livros publicados para constatar o declínio da cultura democrática nos últimos anos. Se ela morrer, pelo menos não será por falta de diagnósticos e nem de prognósticos. Mas antes de antecipar seu fim, não seria conveniente anamnese mais atenciosa e detalhada? Melhor ainda: realizar um retrospecto do passado a partir da trajetórias de protagonistas que atuaram no processo inverso, movendo-se no sentido do antirrelógio, ou seja, na transição de regimes autoritários para regimes democráticos?

Esta talvez seja o grande feito do livro Transições Democráticas; ensinamentos dos líderes políticos, lançada no Brasil sob os auspícios da IDEA (International for Democracy and Electoral Assistance – Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral, em tradução livre) e da Fundação FHC. 

Acompanhadas por rápidos ensaios de especialistas e uma cronologia sumária, a coletânea apresenta entrevistas longas e detalhadas com nove ex-presidentes e primeiros-ministros de seis países que atuaram nas passagens de regimes autoritários para regimes democráticos. Realizadas entre 2012 e 2013, elas possibilitam conhecer os bastidores e as dificuldades da construção e estabilização dos regimes democráticos através das trajetórias de Fernando Henrique Cardoso, do Brasil; Patricio Aylwin e Ricardo Lagos, do Chile; Felipe González, da Espanha; Ernesto Zedillo, do México; Aleksander Kwasniewski e Tadeusz Mazowiecki, da Polônia e F. W. de Klerk e Thabo Mbeki, da África do Sul.

Embora as entrevistas obedeçam aos tortuosos ditames da memória de cada um dos líderes políticos e respondam às pautas nem sempre abrangentes dos organizadores, elas representam, na prática, uma espécie de história viva destes países nas duas últimas décadas do século 20. Para não ficar apenas nos figurantes masculinos da história, a coletânea ainda se completa com um ensaio de Georgina Waylen que resume as entrevistas que realizou com mulheres ativistas que se destacaram nos processos de transições democráticas nos seis países.

Foram processos prolongados, que duraram de 20 a 25 anos, embora alguns eventos espetaculares – como a posse de Nelson Mandela na África do Sul, a esmagadora vitória do “não” no plebiscito chileno de 1988 ou derrota dos comunistas nas eleições polonesas de 1989 – tenham se tornado emblemáticos e catalisadores de mudanças latentes há décadas. O que surpreende logo de saída, entre os seis diferentes experimentos de transições de um regime autoritário para a abertura democrática, são as formidáveis semelhanças de estratégias dos líderes políticos face aos enormes desafios políticos que enfrentaram. 

Como a cooperação entre as diversas forças e movimentos sociais de oposição aos regimes fortes germinou após um período de forte polarização política? Como resolver os conflitos em sociedades nas quais as vozes dos movimentos sociais foram compulsoriamente silenciadas ou recalcadas, num cenário de declínio da cultura política democrática? Como criar um novo marco institucional sem agravar os antagonismos e ressentimentos dos grupos sociais?

Saber como unir as oposições e dividir o adversários que exerciam o poder, foi fundamental em quase todas as transições. Isso é apontado, por exemplo, por Fernando Henrique Cardoso, que confessou a sua principal estratégia: “não derrubar os militares, mas induzi-los a buscar uma saída.” Aylwin, do Chile, também apontou para algo semelhante: “para alcançar a convergência foi necessário focar claramente naquilo que unia as pessoas, não no que as separava”. Mas decisões difíceis também tiveram que ser tomadas por todos eles, sobretudo no sentido de excluir certos grupos que se negavam a renunciar à luta armada ou insistiam em fazer exigências inflexíveis de autonomia regional, étnica ou sectária- como foram os casos, respectivamente, da Espanha, da África do Sul e da Polônia.

Realizar uma transição bem-sucedida não foi uma tarefa para dogmáticos mas para líderes que souberam explorar, ao máximo, os limites da racionalidade na política. “Para que haja democracia, deve haver democratas, e isso é algo que ainda estamos formando no México”, confessou Ernesto Zedillo. 

Muitos tiveram que aceitar a participação nos quadros institucionais já existentes, como foram os casos exemplares da Polônia e da África do Sul. Mas não fizeram milagres, nem seguiram quaisquer modelos e passaram bem longe de quaisquer messianismos. Os perfis foram os mais variados possíveis: eram ativistas da oposição, ex-membros do governo autoritário, políticos experientes, advogados, economistas, um comandante militar, um suboficial, um editor-chefe de um jornal, um sociólogo e um engenheiro aeronáutico. 

Os líderes políticos da transição tinham que ouvir as elites políticas, mas ao mesmo tempo garantir espaços de diálogo com os movimentos de massa, as organizações da sociedade civil em suas mais diversas formas de manifestações – greves, protestos, “panelaços” e outras formas de pressão política. Manter-se neste equilíbrio instável, de diferentes maneiras e medidas, foi essencial em cada uma dessas seis transições – da exigência das Diretas Já no Brasil até as greves gerais do movimento sindical Solidariedade na Polônia ou os protestos estudantis no México em 1968. 

Um dos mais intrincados e difíceis desafios em todos os casos foi submeter as Forças Armadas e outras instituições de segurança à autoridade civil, reconhecendo a legitimidade de suas funções, seu direito de obter recursos, incluindo a necessidade de protegê-los das represálias das antigas forças da oposição. Em todos os casos, foram criadas as chamadas “Comissões da Verdade” – a nomenclatura foi muito variada em cada país, mas a função era a mesma: submeter os atos de violência e repressão do passado ao escrutínio mais justo e equilibrado possível.

Compartilhando bastidores de suas trajetórias, na maioria das vezes dramáticas e conflituosas, os entrevistados também relembram episódios pitorescos. Quando perguntado a respeito do sistema de partido único existente na Polônia comunista – que se autonomeava “democracia socialista” – Mazowiecki relembra uma piada bem polonesa da época: “qual a diferença entre uma democracia e uma democracia socialista? Resposta: a mesma entre uma cadeira e uma cadeira elétrica!”. Já a censura ditatorial no Chile de Pinochet, chegou a atingir altos níveis de ridículo: até um jornal declaradamente pró-governo como o La Segunda – chegou a ser fechado por um dia por ter anunciado um aumento do preço dos cigarros na primeira página, “alterando a tranquilidade do povo” – justificou o censor. Após o plebiscito em 1988, o jornal governista La Nación saiu com quase um dia de atraso, pois teve que substituir às pressas a página pronta do “sim” para reconhecer a vitória do “não”. Para contrabalançar, no mesmo dia saiu a manchete, francamente piadista, do jornal oposicionista Fortin Mapocho: “Ele (Pinochet) concorreu sozinho e ainda chegou em segundo!”

Os nove entrevistados se revelaram admiráveis líderes políticos, mas, no cenário atual da cultura política certamente encontrariam algumas dificuldades. Porque é impossível compreender a política atual sem entender a natureza transformadora da Internet – que praticamente inexistia nas décadas das transições democráticas. Passamos a depender de formas de comunicação e compartilhamento de informações que escapam ao nosso controle: líderes políticos com muitos seguidores nas mídias sociais exercem controle sobre as pautas políticas, ainda que suas alegações e discursos não resistam a uma checagem de fatos básica. De qualquer forma, a coletânea é uma oportuna lição de civilidade pública, sobretudo diante do festival de intolerância e da enorme radicalização das agendas políticas atuais.

*É historiador, professor titular da USP e autor, entre outros livros, de ‘Raízes do Riso: a representação humorística da história brasileira’ (Companhia. das Letras) e coordenador do site humorhistoria.wordpress.com

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