segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Bruno Carazza* || 'Mano a mano hemos quedado'

- Valor Econômico

Retorno de Cristina pode marcar guinada de Bolsonaro

A piada corrente na semana passada, após o resultado das prévias da eleição presidencial, era que, na Argentina, em 30 dias, tudo muda - em compensação, em 30 anos, tudo permanece igual. O possível retorno de Cristina Kirchner ao poder, desta vez como vice de seu antigo chefe de gabinete, Alberto Fernandez, abalou os mercados financeiros e ressuscitou o temor da volta do populismo de esquerda em um de nossos mais importantes parceiros.

A derrota do presidente Mauricio Macri nas primárias do último dia 11 de agosto foi acachapante não apenas pelo resultado agregado - 47,65% para a chapa kirchnerista Frente de Todos, contra 32,08% da coligação governista Juntos por el Cambio. A diferença de 3,8 milhões de votos, num universo de quase 25 milhões de eleitores, foi obtida em 21 das 23 regiões argentinas - Macri só venceu na capital Buenos Aires e em Córdoba.

Apesar de inesperado pela magnitude, o resultado das prévias pode ser explicado pelo desapontamento da população argentina com as entregas da administração atual. Após 12 anos de domínio do casal Nestor e Cristina Kirchner, Mauricio Macri elegeu-se presidente em 2015 prometendo mudança (aliás, o nome da sua coligação era justamente Cambiemos). Em seu discurso de posse, perante o Congresso Nacional, exibia a autoconfiança típica do argentino estereotipado, prometendo nada menos do que eliminar a pobreza no país ao final de seu mandato.

A promessa de Macri era adotar uma política econômica liberal, que atrairia investimentos e geraria crescimento e emprego, reduzindo a pobreza. Nos primeiros meses de governo, empenhou-se em desarmar as regras intervencionistas criadas por Cristina Kirchner no câmbio e nos preços administrados, como energia, transporte público e abastecimento de água. A população mais pobre sofreu mais diretamente os efeitos do choque de tarifas, e Macri arrefeceu no seu ímpeto reformista, temendo os impactos sobre sua popularidade.

Gradualismo passou a ser a palavra de ordem na política econômica de Macri. E sua opção por não enfrentar de frente as causas do elevado déficit fiscal e da estrutura econômica ineficiente impôs um preço sobre seu governo. De um lado, o governo não consegue incentivar investimentos: a taxa de formação bruta de capital fixo, que chegou a superar 20% do PIB em 2007, vem caindo desde que Macri assumiu, chegando a apenas 13,5% no primeiro trimestre deste ano. De outro, a inflação saiu de controle, passando de 25% em 2017 para mais de 55% nos últimos 12 meses. A crise econômica bateu à porta da Casa Rosada em 2018, e Macri capitulou ao firmar um acordo com o FMI. De pouco adiantou.

Em vez do utópico "pobreza cero", a realidade é que 32% da população argentina vivem hoje abaixo da linha da pobreza, segundo os dados oficiais do Indec, o IBGE de lá. E foi esse contingente da população que decidiu o jogo na preliminar da semana passada. Apenas na província mais populosa, Buenos Aires (que exclui a capital), Fernandez e Kirchner abriram 1,9 milhão de votos de frente. Lá, a taxa de desemprego é de 11,2%, contra 7,2% na capital.

Macri entendeu o recado. Demitiu seu ministro da Economia e, numa canetada, aumentou o salário mínimo e benefícios sociais, congelou os preços dos combustíveis e concedeu um abono para servidores públicos e militares.

Ao longo do século 20, Brasil e Argentina caminharam de mãos dadas nos seus principais movimentos políticos e econômicos: desde o populismo trabalhista de Vargas e Perón, passando pelas ditaduras militares, a hiperinflação da década de 1980, os ajustes liberais dos anos 1990 e a ascensão da esquerda nos anos 2000. As vitórias de Macri e Bolsonaro, velhos políticos embrulhados num discurso de renovação política e liberalismo econômico, são o passo mais recente nessa dança.

Na economia, além dos vínculos comerciais, Brasil e Argentina se enlaçam no compasso do voo de galinha. Como pode ser visto no gráfico abaixo, há muito nossos PIBs se movimentam em ritmo coordenado, alternando rompantes de "agora vai" com mergulhos na recessão, presos que estamos na armadilha do baixo crescimento.

Assombrado pelo fantasma do efeito Orloff, uma vitória de Alberto Fernandez e Cristina Kirchner em 27 de outubro pode ser o estopim para uma guinada na postura de Bolsonaro em relação à economia brasileira. Corporativista e estatista raiz, convenientemente convertido ao liberalismo de Paulo Guedes para agradar ao mercado e vencer a eleição, o presidente brasileiro certamente está de olho no destino de seu parceiro Mauricio Macri.

Com a economia demorando a deslanchar e tornando-se cada vez mais claro que o paraíso não virá com a aprovação da reforma da Previdência, não sabemos do que Bolsonaro pode ser capaz para manter-se no poder e, na sua mente olavista, evitar que o país caia novamente sob o domínio do "Foro de São Paulo". Os ventos vindos do sul podem ser o prenúncio de uma virada no tempo também por aqui.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro".

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