quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Deltan usou partido político para mover ação contra Gilmar Mendes no Supremo

Diálogos divulgados por UOL e Intercept mostram intenção de atingir ministro do STF

Igor Mello, Gabriel Sabóia Silvia Ribeiro Paula Bianchi / DO UOL, NO RIO, E DO THE INTERCEPT BRASIL

O procurador Deltan Dallagnol, chefe da Operação Lava Jato em Curitiba, usou a Rede Sustentabilidade como uma espécie de laranja para extrapolar suas atribuições e propor uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) contra o ministro Gilmar Mendes, segundo revelam mensagens privadas de integrantes da força-tarefa enviadas por fonte anônima ao site The Intercept Brasil e analisadas em parceria com o UOL.

A articulação, que envolveu o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), resultou na apresentação de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no Supremo para impedir que Gilmar soltasse presos em processos nos quais ele não fosse o juiz da causa.

A negociação foi relatada por Deltan a outros integrantes da força-tarefa a partir de 9 de outubro de 2018 —dois dias depois, a Rede de fato protocolou a ADPF.

A manobra tinha como objetivo driblar as limitações de seu cargo: Deltan e seus colegas de Lava Jato são procuradores da República, primeiro estágio da carreira do MPF (Ministério Público Federal) e só podem atuar em causas na primeira instância da Justiça Federal. Por isso, têm atribuição de atuar em processos da 13ª Vara Criminal Federal, comandada até novembro pelo ex-juiz Sergio Moro.

No âmbito do MPF, a atribuição para atuar junto ao STF é exclusivamente da PGR (Procuradoria-Geral da República), comandada por Raquel Dodge. Dessa forma, ao usar um partido para dar sequência à causa, conforme revelam as mensagens, a Lava Jato usurpou a competência da chefe do MPF.

Além de Dodge, um seleto grupo de autoridades e instituições pode propor ADPFs no Supremo: o presidente da República; as mesas diretoras da Câmara e do Senado; as Assembleias Legislativas, os governadores e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Também têm essa prerrogativa confederações sindicais e de classe, além de partidos políticos com representação no Congresso —caso da Rede Sustentabilidade.

Desde setembro, os procuradores se queixavam de uma decisão tomada por Gilmar Mendes sem relação direta com as investigações da Lava Jato, segundo revelam as mensagens.

No dia 14, o ministro decidiu de ofício —isto é, sem ser provocado— soltar Beto Richa (PSDB), então governador do Paraná, e outros 13 investigados pelo Ministério Público do Paraná na Operação Rádio Patrulha, deflagrada três dias antes.

O assunto voltou a ser abordado por Deltan em 9 de outubro.

A reportagem manteve as grafias das mensagens tal qual constam nos arquivos obtidos pelo Intercept, mesmo que contenham erros ortográficos, gramaticais ou de informação.

“Resumo reunião de hoje: Gilmar provavelmente vai expandir decisões da Integração pra Piloto. Melhor solução alcançada: ADPF da Rede para preservar juiz natural”, escreveu no grupo Filhos do Januário 3 no aplicativo Telegram, composto por membros da força-tarefa, às 14h13.

Duas horas depois, Deltan volta à carga, dessa vez já dando um retorno de Randolfe Rodrigues sobre a ideia. Ele indica que o político concordou em patrocinar a ação pretendida pela Lava Jato.

“Randolfe: super topou. Ia passar pra Daniel, assessor jurídico, já ir minutando. Falará hoje com 2 porta-vozes da Rede para encaminhamento, que não depende só dele”, escreveu no mesmo grupo dos procuradores no Telegram às 16h47.

O UOL não identificou quem é o assessor jurídico relatado pelo chefe da Lava Jato em Curitiba, tratado na mensagem apenas pelo primeiro nome.

No dia seguinte, 10 de outubro, o procurador Diogo Castor, então membro da força-tarefa, dá a entender que enviou para um integrante da equipe de Randolfe uma “sugestão” sobre como deveria ser a minuta da ação, mais um indício de que a ADPF, na prática, foi feita pelos procuradores.

“mandei a sugestão da adpf pro assessor do randolfe”, escreveu Castor às 17h42.

Logo depois, às 17h49, completou, errando o nome do senador: “bastidores: assessor do randolfe alves informou que a boca grande de bsb [Brasília] diz que gilmar vai soltar marconi perilo [Marconi Perillo, do PSDB, ex-governador de Goiás] pelo mesmo caminho”.

Perillo, que havia renunciado ao Governo de Goiás em março de 2018 para se candidatar ao Senado, foi preso em 28 de setembro, quando deflagrada a Operação Cash Delivery pelo MPF e PF.

Em 11 de outubro, Deltan antecipou aos procuradores às 13h58, horas antes que o assunto fosse noticiado pela imprensa ou divulgado pelo senador, que a ADPF havia sido protocolada pela Rede.

“Hoje protocolada ADPF da rede contra GM [Gilmar Mendes]”, relatou em um dos tópicos sobre uma reunião que havia realizado.

Dois subordinados de Randolfe se envolveram diretamente na ADPF. Os advogados Danilo Morais dos Santos e Cristiane Nunes da Silva, que assinam a ADPF da Rede, trabalham no Senado.

Danilo é lotado como analista legislativo na liderança da Minoria da Casa —o posto de líder é ocupado pelo senador da Rede. Já Cristiane é ajudante parlamentar júnior no gabinete de Randolfe. Antes, ela já havia atuado no escritório de apoio do senador no Amapá.

Na ação, a Rede usa como argumento central para tentar cassar a decisão de Gilmar o princípio do juiz natural, o mesmo que já havia sido citado por Deltan nos diálogos com os colegas.
O partido argumenta que a ação é necessária “para impedir que o referido ministro Gilmar Mendes continue a conceder liminares para beneficiar presos de modo absolutamente revel à liturgia do processo penal, convertendo-se numa espécie de ‘Supervisor-Geral’ das prisões cautelares levadas a termo em operações de combate à corrupção no Brasil”.

A ADPF também pedia a revogação da soltura de Beto Richa e dos outros 13 detidos.

Assim que a notícia de que a ADPF tinha sido protocolada chegou, os procuradores começaram a especular sobre quem seria o ministro relator. Às 18h55, Diogo Castor anuncia: “Carmen Lúcia relatora”.

O procurador Athayde Ribeiro Costa, outro integrante da força-tarefa, então dispara: “Frouxa”. Castor então rebate: “Sei não hein”. Ele emenda: “Contra gm [Gilmar Mendes]”, ponderou, “Ela vai crescer”.

Athayde novamente discorda: “Amiguinha”. Deltan encerra a discussão, também manifestando uma opinião crítica sobre a ministra: “Ela é amiga da esposa do GM”, escreveu às 19h17.

Em novembro, Cármen Lúcia negou seguimento à ADPF da Rede, arquivando a ação.

PROJETOS APRESENTADOS POR RANDOLFE
Mesmo na condição de investigado, o senador continuou sendo próximo dos procuradores, como fica evidente em um diálogo travado em 5 de outubro de 2016 no grupo Brigada Digital, que reúne procuradores de vários estados do país.

Na ocasião, o procurador da República Helio Telho, do Ministério Público Federal em Goiás, envia um projeto de lei apresentado por Randolfe aos colegas no chat. Telho é integrante do Núcleo de Combate à Corrupção do MPF em Goiás e foi um dos procuradores responsáveis pela prisão do ex-governador Marconi Perillo na Operação Cash Delivery, em setembro de 2018.

O procurador Marcos Antônio da Silva Costa pergunta a ele se o projeto em questão é "um daqueles" de sua autoria apresentados pelo senador. Telho confirma que Randolfe costumava representar interesses dos procuradores. O texto chega a ser elogiado pelo procurador Júlio de Castilhos.

Os procuradores da Lava Jato chegaram a comemorar a sua reeleição, no grupo Winter is Coming, em um diálogo de 7 de outubro do ano passado, dia do primeiro turno das eleições. Enquanto o resultado das urnas era apurado, o procurador Helio Telho comemorava os números parciais que mostravam o político à frente da disputa para o Senado pelo Amapá.

Telho se referiu a Randolfe como "aliado nosso" e, algumas horas depois, a procuradora Janice Ascari se disse "muito feliz" com o resultado final, que o reelegeu.

OUTRO LADO
O UOL procurou os citados para repercutir as revelações da reportagem. À força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, solicitou um posicionamento sobre a articulação junto ao senador Randolfe. Em nota, a força-tarefa respondeu que:

“A força-tarefa da Lava Jato em Curitiba informa que não reconhece as mensagens que têm sido atribuídas a seus integrantes nas últimas semanas. O material é oriundo de crime cibernético e tem sido usado, editado ou fora de contexto, para embasar acusações e distorções que não correspondem à realidade. O UOL se recusou a enviar as supostas mensagens usadas na reportagem, o que prejudica o direito de resposta. Tratando do tema em abstrato, é plenamente lícito o contato com entidades da sociedade civil, públicas e privadas, inclusive o fornecimento de informações públicas e análises, para defender o interesse social nos temas de atuação do Ministério Público”.

Randolfe Rodrigues foi questionado sobre a negociação com Deltan Dallagnol para que a Rede fosse usada como plataforma para uma ADPF de interesse dos procuradores.

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