sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Elena Landau*: Sob ataque

- O Estado de S.Paulo

Os políticos jamais aceitaram a autonomia das agências reguladoras

Foram precisos 16 anos de tramitação no Congresso para aprovação da Lei Geral para agências reguladoras e apenas um punhado de dias para o governo desmoralizá-la. Bolsonaro e Osmar Terra ameaçaram fechar a Ancine e a Anvisa por discordar de suas decisões.

Na realidade, os políticos jamais aceitaram a autonomia dessas autarquias e a população não entende bem para que servem. Muitas foram criadas no fim dos anos 90 para acompanhar a mudança no papel do Estado, decorrente da privatização, e surgiram para regular os serviços públicos. São as que atuam nos segmentos de energia, transporte e telecomunicações, por exemplo. Até a desestatização, esses serviços eram oferecidos sem fiscalização e sem regulação. Havia o pressuposto que o Estado estava dando o melhor de si. Ao consumidor só restava aceitar, porque não havia nem sequer a quem reclamar. A agência reguladora de energia – Aneel – foi a primeira a ser criada e substituiu o DNAEE, um departamento vinculado ao ministério setorial, que funcionava basicamente repassando aumentos tarifários. Não havia foco na qualidade, na saúde financeira das empresas nem em investimentos.

A privatização mudou esse cenário e as agências foram criadas para, de forma imparcial entre investidores e consumidores, regular a prestação de serviços, garantindo e exigindo direitos e deveres definidos nos contratos de concessão assinados pelos novos controladores. Foi uma mudança cultural grande e, por isso mesmo, é natural que se leve tempo para entender suas reais funções. Às vezes, são vistas como uma espécie de Procon, criadas para defender o usuário do serviço. No entanto, quando elas homologam reajustes de tarifas ou mensalidades, com base nos contratos assinados, viram o “governo” malvado que aumenta tudo.

Fica ainda mais difícil para a sociedade entender seu papel porque há diferentes tipos de agências. Há as que também são de fomento, como Ancine, que atua no mercado audiovisual e tem a função de promover ganhos intangíveis, ampliando e democratizando o acesso à cultura e à informação. Suas decisões devem obedecer a princípios como: liberdade de expressão e promoção da diversidade cultural e das fontes de informação, produção e programação. Há as de regulação de produto, como a Anvisa, que tem entre suas obrigações normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde.

Independentemente de seu papel, todas elas são agora regidas pela Lei Geral, recém-promulgada, que reafirmou no texto legal a garantia de sua autonomia, como bem definida no Art. 3.º: “A natureza especial conferida à agência reguladora é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos”. O presidente vetou alguns artigos da nova lei, mas manteve o texto que garante a independência decisória. Não deve ter lido o que assinou e, se leu, não entendeu, e se entendeu, não deu bola. Afinal, o Estado é ele.

Nesses 20 anos de existência, a independência das agências foi fragilizada pela indicação política de seus diretores, pelo contingenciamento de recursos e por cooptação pelo ministério a que estão subordinadas. Um regulador que participa de cerimônias de lançamento de políticas ao lado do governo perde a isenção para analisar os impactos de tais políticas sobre a sociedade, aceitando de livre e espontânea vontade a subordinação hierárquica que a lei veda.

O ataque frontal que este governo vem fazendo às agências é muito grave, indo além das formas de captura tradicionais. Presidente e ministros resolveram atropelar a lei.

Osmar Terra sugeriu que fecharia a Anvisa por discordar da aprovação do uso medicinal da maconha – ao que ele se opõe só por crença e sem ciência. Só que a lei não permite. Bem fez seu diretor em reafirmar a continuidade dos estudos nessa direção, mostrando a separação entre governo e agência de forma clara.

A Ancine foi fortemente criticada pelo presidente, que tem dificuldade para entender o significado de “liberdade de expressão” e “diversidade cultural”. Quer ele mesmo decidir que filmes são “próprios” e que “heróis” devem ser homenageados pelo cinema brasileiro. Mostra também ignorância sobre as fontes de recursos ao ameaçar transferi-los para Secretaria de Comunicação diretamente ligada a ele. 

Mas, ao contrário da Anvisa, o presidente da agência não se manifestou, e o setor de audiovisual vive momento de paralisia e incerteza. A ignorância de Bolsonaro sobre como funcionam as agências é tão grande que ele ameaçou “privatizar” a Ancine, contribuindo para o trágico Febeapá em que se transformou seu governo.

* É economista e advogada

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