quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Fernando Schüler*: Combater a pobreza ou os mais ricos?

- Folha de S. Paulo

Tema politicamente mais morno, pobreza perde espaço para a retórica da desigualdade

A Folha vem fazendo uma ótima série de reportagens sobre o tema da desigualdade e da pobreza. Uma das melhores foi com o Prêmio Nobel James Heckman.

Ele provocou: “Por que deveria ser uma preocupação para mim se outra pessoa ganha muito mais do que eu?”. Seu argumento é direto: se eu tenho uma vida digna, a questão se torna a inveja, “que não é bom motivo para nada”.

Heckman expressa uma visão cética em relação a todo o barulho atual em torno do tema da desigualdade. O maior cético de todos talvez seja Harry Frankfurt, o filósofo de Princeton. Sua questão: qual é mesmo a relevância da assimetria de renda entre uma família de classe média, com acesso a todos os bens fundamentais, e os mais ricos? Vamos supor que estejamos lidando com sociedades abertas e economias de mercado. Qual é mesmo o incômodo moral que produz esta diferença de renda?

Se não houver incômodo, ou ele for difícil de explicar, a conclusão parece óbvia: o que nos incomoda e causa indignação moral não é o fato de que alguém passe suas férias no litoral paulista, enquanto os vizinhos alugam uma temporada no Savoy, em Londres. O que incomoda é a pobreza. A miséria.

O fato de que, à despeito do enorme avanço civilizatório que assistimos, nas últimas décadas, ainda resta um contingente expressivo de pessoas que foram deixadas para trás.

Há um raciocínio intuitivo aí. Vamos supor que você esteja prestes a vir ao mundo e recebe duas opções: viver na Índia dos anos 1980 ou na Índia atual. Na primeira opção, sua chance de crescer em uma família miserável é de 50%. Na segunda opção, seu risco caiu a menos de 15%, mas a desigualdade econômica cresceu. O que você escolheria?

O mesmo raciocínio vale para o caso chinês. No ano da morte de Mao, sua chance de crescer na pobreza era superior a 90%. Em alguns anos, segundo o governo chinês, esta hipótese será praticamente nula. Mas você terá que conviver com esses malditos bilionários que não param de se reproduzir.

Não parece haver muitas dúvidas sobre qual seria a escolha da maioria das pessoas. Este, aliás, é um aspecto intrigante do discurso que prioriza a desigualdade em relação à pobreza: ele é contraintuitivo, na vida real das pessoas, mas é politicamente mobilizador.

No mundo da retórica, sempre poderíamos desejar que tudo fosse diferente, que os chineses mais ricos controlassem 32% e não 40% da renda, e coisas assim. Cada um criar sua própria engenharia social. Ela funcionaria? Teria sido possível retirar quase 1 bilhão de pessoas da miséria, nestes dois países, com políticas de igualdade econômica? A imaginação é o limite, nessa resposta.

Este sempre foi, para mim, um ponto curioso da retórica da desigualdade. Thomas Piketty, o grande guru do tema, nos últimos anos, diz que “a partir de um certo ponto” a desigualdade é injusta e compromete valores democráticos. Mas qual seria, exatamente, este ponto?

Se a desigualdade é, de fato, um problema ético, qual seria a diferença de renda ou número de bilionários que deveria despertar nosso senso moral? Haveria algum padrão racional para isto? Os filósofos deveriam definir essas coisas?

Ronald Dworkin observou que, em geral, quando falamos em desigualdade, tendemos a mencionar, logo em seguida, temas relacionados à pobreza. Vai aí um sinal. É isto que, ao final do dia, nos incomoda de um ponto de vista moral.

O problema é que o tema do combate à pobreza é politicamente morno. É sempre mais fácil conseguir uma manchete ou fazer uma passeata contra os barões de Wall Street ou a favor de sobretaxas aos mais ricos do que fazer uma discussão séria sobre como reduzir a pobreza.

Exatamente a discussão que James Heckman propõe: “Em vez de falar do capitalista rico espremendo o pobre trabalhador, estou falando do pobre trabalhador aprimorando suas condições”.

Este é o debate. Ele é menos sexy do que o tema da desigualdade precisamente por não se tratar de uma retórica de combate. É um tema difícil, que diz respeito à imensa legião de cidadãos que vivem à margem e não tem voz no mercado político.

Nas duas décadas entre 1990 e 2010, a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha da miséria caiu de 36% para 16%. Isso aconteceu a partir de uma nova dinâmica de abertura econômica e revolução tecnológica que, por óbvio, produziu resultados desiguais.

O ponto é saber como se pode capacitar mais e mais pessoas para integrar esta dinâmica. Não é tão fácil nem tão divertido todo o barulho em torno da desigualdade, mas é o que precisa ser feito.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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