quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Jorge Arbache*: A globalização chegou ao fim?

- Valor Econômico

Entre as ameaças estão as tensões sociais causadas por impactos das tecnologias e ataques cibernéticos

Há um crescente sentimento mundo afora de que a globalização teria chegado ao fim e que uma nova ordem estaria emergindo. Para suportar esta narrativa, os céticos miram em manifestações como a desaceleração dos fluxos de comércio, de finanças e de investimentos, na ascensão do nacionalismo e das políticas protecionistas, na guerra comercial, na contestação a iniciativas multilaterais, no crescente controle de investimentos estrangeiros e nas políticas anti-imigração. E a isto agregam sentimentos negativos da população, que creditaria o aumento do desemprego e da desigualdade à globalização.

Mas será mesmo que a globalização estaria em retirada? Se medirmos integração e interdependência econômica entre países - que são as principais características definidoras da globalização - por fluxos comerciais de bens e serviços e por fluxos financeiros e de investimentos, como normalmente é feito, então haveria sinais de uma possível pausa. Porém, se usarmos métricas mais alinhadas com a dinâmica econômica do século XXI, então haveria sinais de que a globalização estaria acelerando e não recuando.

E que métricas são essas? Trata-se de indicadores de integração e de interdependência econômica entre países que vão muito além do comércio e dos fluxos financeiros. Considere o que passa no campo dos padrões técnicos e regulatórios. As últimas décadas presenciaram uma verdadeira globalização de padrões, protocolos, certificações, processos e normas de controle e monitoramento em áreas relativamente simples, como a de transportes por contêineres, e em áreas mais complexas, como a de produção de bens e serviços, comunicações e temas fitossanitários, de segurança e de qualidade, dentre tantas outras áreas.

Essa padronização reduz os tempos, aumenta a previsibilidade, permite a identificação de riscos e seus mitigantes, pavimenta cadeias de valor e, assim, encurta caminhos, estimula investimentos e fluxos de fatores e viabiliza a integração da produção e dos mercados. As perspectivas para o futuro são de ampliação do escopo e da intensidade dessa padronização.

Considere, ainda, o que passa com as plataformas e redes de serviços digitais e comércio eletrônico e com as plataformas e sistemas operacionais de telefonia celular e de computadores. Testemunhamos uma sem precedentes massificação do acesso a serviços digitais que está conectando a tudo e a todos. Essa conexão é possível por meio de sistemas operacionais e protocolos padronizados da internet que permitem que bilhões de usuários se comuniquem a custo quase zero, acessem simultaneamente conteúdos digitais e façam negócios desde praticamente qualquer lugar do mundo.

Expansão da conectividade, queda dos custos de computação e de sensores e nível relativamente baixo de regulamentação nos mercados digitais estão acelerando a adoção e o uso de tecnologias digitais, permitindo o surgimento de toda uma nova geração de modelos de negócios e fomentando a integração econômica. A tendência é de que essa comoditização digital siga aumentando.

Mas há, ainda, outras evidências que apontam o avanço da globalização. Pense nos mercados financeiros e de capitais, que estão cada vez mais unidos por produtos e serviços, o que é viabilizado pela padronização de rotinas, processos e normas contábeis e regulatórias, pelas políticas de gestão financeira e de riscos e pelos sistemas de pagamentos. Tudo isto está promovendo integração econômica e crescente interdependência das economias.

Pense, também, na sem precedentes consolidação dos mercados de bens e serviços, em que cada vez menos tomadores de decisão exercem cada vez mais influência sobre os mercados e sobre os investimentos em nível mundial, o que integra modelos de negócios e mercados. As evidências sugerem que a consolidação de mercados seguirá crescendo nos próximos anos.

Por fim, a despeito das recentes indicações de políticos por preferências por relações econômicas bilaterais entre países, vários acordos comerciais plurilaterais foram aprovados ou estão em negociação promovendo harmonização técnica e regulatória e padrões de referência em áreas tão variadas como serviços, compras governamentais, economia digital, investimentos, propriedade intelectual, condições de trabalho, padrões fitossanitários, governança de empresas estatais e meio ambiente. Essa harmonização também está contribuindo para aproximar e integrar mercados.

Com a computação quântica, a tecnologia 5G e a internet das coisas, as oportunidades de colaboração e compartilhamento serão ainda maiores e as atividades econômicas se tornarão ainda mais fluidas. De fato, estamos numa era em que o intangível ganhou protagonismo na formação do valor, as cadeias globais de valor estão se regionalizando e muitas formas de integração econômica não são captadas pelas contas nacionais e tampouco pelos livros dos reguladores.

Portanto, podem ser precipitadas as conclusões de que a globalização estaria chegando ao fim, posto que os céticos normalmente não levam em conta dimensões mais sofisticadas da integração dos mercados e da interdependência das economias. Ao que parece, a globalização estaria se transformando e não recuando.

Dentre os temas que mais poderão ameaçar a globalização estão as tensões sociais associadas aos impactos das novas tecnologias, ataques cibernéticos que interfiram na integridade e na segurança dos dados e sistemas e bloqueios deliberados ao uso de plataformas, sistemas operacionais, sistemas de pagamentos e protocolos digitais, criando muros e apartando pessoas, negócios e até países.

*Jorge Arbache é vice-presidente de Setor Privado do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF)

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