domingo, 18 de agosto de 2019

‘Os Poderes precisam bater continência à Constituição’, afirma Ayres Britto

Ministro aposentado do STF faz ressalvas, em entrevista ao GLOBO, ao projeto lei sobre abuso de autoridade

Bernardo Mello || O Globo

RIO — Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto criticou o projeto de lei sobre abuso de autoridade aprovado pela Câmara . A matéria aguarda sanção ou veto do presidente Jair Bolsonaro . Para Ayres Britto, há risco de “violação da autonomia” dos juízes.
O ex-ministro, ativo na advocacia aos 76 anos — integrou a equipe jurídica de Aécio Neves (PSDB) na campanha de 2014, quase três décadas depois de ser candidato a deputado federal pelo PT —, afirmou ainda que é preciso resguardar a independência do Supremo , bombardeado por críticas de diferentes setores do espectro político.

• A lei do abuso de autoridade é um contra-ataque ao Judiciário?

O Judiciário, além de independente, tem autonomia técnica para julgar segundo sua convicção e sua ciência própria. O crime que um magistrado pode praticar é o de responsabilidade, ou uma infração administrativa. Abuso de autoridade, não. A título de imputar o abuso de autoridade a um juiz, o Estado vai terminar por violar sua autonomia técnica. Vai criminalizar o modo como o juiz interpreta o Direito.

• Defensores do projeto sustentam que não haverá “crime de hermenêutica”, de interpretação de lei...

Se você relativizar a liberdade de expressão, você absolutiza o poder do Estado. Não há meio-termo: ou você absolutiza o poder do Estado de criminalizar a liberdade técnica do juiz ou absolutiza a autonomia interpretativa do magistrado. “Abuso” se associa a um transbordamento do modo de entender ou aplicar o Direito. Como separar, então, este suposto “abuso” do estabelecimento de uma censura, de uma criminalização de certas interpretações do Direito? É impossível.

• É preciso, hoje, haver um pacto entre os Poderes, como proposto pelo presidente do STF, Dias Toffoli?

Vejo isto com muitas ressalvas. Os Poderes só devem pactuar com a Constituição. Há até um certo compartilhamento de funções entre Executivo e Legislativo, mas o Judiciário não tem nada a ver com isso. Até porque, quando se mete a se familiarizar com os outros Poderes, o Judiciário termina cooptado. Quanto mais os Poderes seguirem a Constituição, menos vão depender um do outro. Que cada qual fique no seu quadrado normativo, e a harmonia será uma resultante.

• O inquérito aberto por Toffoli para investigar ofensas à Corte sem o Ministério Público Federal (MPF) é desvio institucional?

Convivi com muitos colegas que permanecem na Corte, como o próprio ministro Dias Toffoli. Se ele acertou ou se errou, prefiro não falar. O que posso dizer é que Toffoli pelo menos tentou, com todo o empenho, satisfazer o inciso IX do artigo 93 da Constituição, que diz que todas as decisões serão públicas e fundamentadas tecnicamente. Sua decisão é incomumente alongada, cheia de justificativas e citações. Mas é verdade que sua interpretação do regimento interno do Supremo suscitou divergências

• Esse tipo de iniciativa não tem desgastado a imagem do STF?

Péricles, o estadista grego, já dizia: “Não participo da vida coletiva porque sou livre. Sou livre porque participo da vida coletiva”. Embora nossa democracia tenha apenas 30 anos, ela veio para ficar. E a cidadania no Brasil está robustecida. Aí entramos na linha de Thomas Jefferson: “O preço da liberdade é a eterna vigilância do povo”. O povo está chegando nos calcanhares do Supremo, porque já percebeu que tudo afunila nele. É natural que o Supremo seja mais criticado, desde que também haja o reconhecimento por parte do povo de que ele não pode ser varrido do mapa jamais. O que eu não gosto é de insultos, de incontinência verbal.

• Qual é a solução para este acirramento político?

Quando o marechal Eurico Gaspar Dutra foi presidente, entre 1946 e 1951, ele sempre respondia da seguinte forma quando ouvia algum pedido, de qualquer autoridade, para que tomasse determinada medida: “Isso está no livrinho?”. O “livrinho” era a Constituição. Então, vamos voltar ao “livrinho”. É preciso bater continência à Constituição.

• O presidente Jair Bolsonaro já criticou abertamente o STF e alguns ministros. Ele tem batido continência à Constituição?

A harmonia entre os Poderes passa por um tratamento reciprocamente respeitoso. Incontinência verbal implica, no limite, falta de decoro. E falta de decoro é falta de continência à Constituição. O artigo 78 da Constituição diz que o compromisso do presidente passa pelo dever de promover o bem geral para o povo brasileiro. Isso significa assegurar a união, e não a desunião. É garantir também a independência do Brasil, e não a subserviência, vassalagem a qualquer outro país.

• O que achou da proposta do presidente de nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF?

Em certos cargos, para os quais você nomeia e demite livremente, há certa subjetividade e confiança. Mas é preciso sempre buscar a objetividade de competência, reputação ilibada, boa fama profissional e ética. Isso deve valer até o cargo de embaixador, embora não seja exatamente da administração pública. Diz o artigo 37 da Constituição que a administração se rege pelos princípios da legalidade, impessoalidade e eficiência. Se bem interpretado este artigo, ele nos leva à seguinte conclusão: não basta aplicar a lei, é preciso aplicá-la por um modo impessoal, moral e transparente.

• A atuação do ministro Sergio Moro no governo tem sido proveitosa ou prejudicial à imagem do Judiciário?

Não vi com bons olhos esta passagem. Como juiz, Moro gerou na sociedade alentadas esperanças de que o Brasil precisava de um Direito Penal de largo espectro. A poucos dias da decisão do segundo turno, o levantamento de sigilo da colaboração do (ex-ministro Antonio) Palocci teve repercussões eleitorais. Então, eu acho que ele deveria ter se preservado no exercício de seu cargo. Lembro a seguinte frase: “Judiciário, teu nome é equidistância”.

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