sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Avanço de direitos civis passará incólume por eleições uruguaias

Partidos de espectros ideológicos distintos têm em comum defesa de leis progressistas

Sylvia Colombo | Folha de S. Paulo

MONTEVIDÉU - Enquanto países como Brasil e Argentina observam o avanço de leis e garantias de direitos civis empacar, quando não retroceder, o Uruguai se aproxima das próximas eleições presidenciais com um panorama diferente.

Ainda que os principais candidatos ao pleito de 27 de outubro pertençam a espectros ideológicos diferentes, todos defendem legislações já aprovadas e colocadas em prática.

Entre elas, as que projetaram o país sul-americano como espaço de vanguarda na região nos últimos 15 anos: legalização do aborto pela vontade única da mulher (até a 12ª semana de gravidez, ou em período mais avançado, em caso de risco para a mãe), matrimônio igualitário, cotas para mulheres no Parlamento e estatização da produção e da distribuição de maconha.

Tanto o líder nas pesquisas, o ex-prefeito de Montevidéu Daniel Martínez, da coalizão de esquerda Frente Ampla, no poder desde 2005, quanto os liberais Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, e Ernesto Talvi, do Partido Colorado, não têm intenção de retroceder nas pautas progressistas conquistadas até aqui.

As discordâncias entre eles são basicamente na área de economia e envolvem propostas sobre como manter a taxa de crescimento do país, cuja média nos últimos 15 anos é de 3%. Educação, que já foi um dos pilares da sociedade uruguaia e hoje está em decadência, e segurança também são temas de discussão.

Existem algumas explicações para isso. Em primeiro lugar, o Uruguai é o país mais legalista da América do Sul.

O atual presidente, Tabaré Vázquez, ele mesmo contrário ao aborto e à legalização da maconha, ao assumir, disse: “Sou contra ambas, mas, antes de tudo, sou um legalista, e essas leis foram aprovadas pelo Congresso uruguaio, portanto eu as implementarei porque manda a lei”. E o fez.

Para Julio Calzada, que foi secretário da Junta Nacional de Drogas de José “Pepe” Mujica (2010-2015), “a sociedade está convencida de que a questão das drogas hoje é questão de saúde pública, não de repressão”, afirma à Folha.

Mas há uma questão de fundo que explica essa excepcionalidade uruguaia. Segundo o historiador Aldo Marchesi, da Universidade da República, “a nova agenda de direitos civis que ressurgiu com força nos anos 1980 nada mais é que a agenda de Batlle y Ordóñez, que sempre esteve no imaginário e nos costumes” do país.

José Batlle y Ordóñez —que governou o país em dois períodos, de 1903 a 1907, e de 1911 a 1915— é considerado o fundador do Uruguai moderno, laico e vanguardista.

Apesar de ele ter pertencido ao Partido Colorado —um partido progressista e liberal—, até o esquerdista tupamaro Pepe Mujica se considera “batllista”. Na época em que a estatização da produção da maconha e a legalização de sua venda foram aprovadas, em 2013, o ex-presidente lembrou que a mudança nada mais era que uma cópia da lei que Batlle y Ordóñez havia feito com a aguardente.

Preocupado com a qualidade do álcool consumido, causa de altos níveis de cirrose e outras doenças, o então presidente ordenou que a petrolífera estatal Ancap também passasse a produzir aguardente de bom nível e distribuísse aos cidadãos uruguaios.

Já a separação entre igreja e Estado, realizada no país há mais de um século, e que parece ser letra-morta em diversas outras nações da região, vale de verdade no Uruguai.

“Aqui nunca se formou um grupo de fiéis históricos. Não há ênfase em educação religiosa, a não ser em colégios privados católicos, o que colaborou para que o Estado laico se impusesse como diz a lei”, afirma o historiador Marchesi.

Além disso, Montevidéu também é um porto. Ao longo de sua história, recebeu imigrantes e ideias vindas de fora que foram absorvidas com facilidade. A mistura de falta de resistência religiosa e de inserção de costumes estrangeiros foi moldando o aspecto vanguardista do país.

Uma das curiosidades é que a Semana Santa, por exemplo, que atrai muitos visitantes ao Uruguai —o turismo é responsável por 2% do PIB— é chamada pelos locais de “semana do turismo”. O Natal é o “dia da família”.

Tampouco se veem crucifixos nos prédios públicos e nas escolas do Estado. Na política, é proibido mencionar fragmentos dos evangelhos ou Deus publicamente.

Rodeado de outros países em que a tradição cristã ainda trava o avanço de leis de gênero, o Uruguai vê tais legislações como fato superado.

Batlle y Ordóñez foi mais moderno que sua época e enfrentou percalços: debateu a proposta de uma lei de eutanásia, mas esta não vingou.

Mas foi ele quem instituiu jornadas de trabalho de 8 horas, seguro-desemprego e divórcio pedido apenas pela mulher —regras ainda vigentes.

Seus feitos fizeram herdeiros. Em 1927, o Uruguai se transformou no primeiro país da América do Sul onde as mulheres podiam votar e também o primeiro a legalizar e regulamentar a prostituição.

É por isso que a disputa presidencial atual, curiosamente, é a de quem é o mais “batllista” entre os candidatos.

Se é a esquerdista Frente Ampla, que considera que seus princípios ainda não se estenderam suficientemente para tornar o Uruguai mais justo, e por isso oferece mais propostas de igualdade social a negros; se são os liberais, que debatem o modo como o país deve acolher imigrantes —tanto do Oriente Médio quanto da Venezuela; ou se é o Partido Colorado.

Este, sim, passa por uma renovação. Nos últimos anos, foi um partido de direita, com Pedro Bordaberry, filho do ex-ditador homônimo, como candidato nas últimas eleições. Agora, está sendo renovado por uma juventude mais progressiva e mais batllista.

Uma coisa parece certa. Ganhe quem ganhe, os direitos civis conquistados nos últimos anos e que viraram uma referência na América Latina não sofrerão retrocessos.

OS AVANÇOS DO URUGUAI
1907
O divórcio foi legalizado no país 70 anos antes do Brasil, mas exigia consenso das duas partes. Em 1913, foi permitido que mulheres entrassem com pedido de divórcio sem autorização prévia do cônjuge.
1927
Foi no Uruguai onde uma mulher votou pela primeira vez na América Latina. O feito aconteceu na cidade de Cerro Chato, e a primeira mulher a votar foi Rita Ribera, uma brasileira de 90 anos. O voto feminino nas eleições nacionais só se deu em 1938.
2004
Um decreto de lei criou a Comissão Honorária contra o Racismo, a Xenofobia e todas as outras formas de Discriminação, caracterizando esses enfrentamentos como responsabilidade nacional.
2012
A interrupção voluntária da gravidez foi aprovada no Uruguai, que se tornou um dos primeiros países da América do Sul a autorizar o procedimento para todos os casos. Uruguaias e residentes há pelo menos um ano no país podem abortar até a 12ª semana de gestação —ou até a 14ª, em casos de estupro.
2013
O país foi o primeiro do mundo a legalizar a produção e a venda da droga. Uruguaios e estrangeiros que residem no país podem comprar até 40g por mês em farmácias credenciadas. Em 2017, o país começou a venda legal de maconha, produzida e distribuída pelo Estado.
2013
Foi o segundo país na América do Sul a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo (o primeiro foi a Argentina). A lei determinou que "o matrimônio civil é a união permanente de duas pessoas de sexos diferentes ou iguais".
2018
A Câmara dos Deputados e o Senado uruguaios aprovaram a Lei Integral para Pessoas Trans. Entre as propostas, estão facilidades para a mudança de nome e a obrigação do Estado de reservar 1% das vagas na administração pública. A lei ainda precisa ser promulgada pelo governo

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