domingo, 29 de setembro de 2019

Merval Pereira – Reação prevista

- O Globo

Para Maria Cristina Pinotti, Mãos Limpas foi mutilada antes de seu final, e não cumpriu integralmente seu papel

Considerar que os delatores são auxiliares de acusação provocou uma repulsa grande ao Supremo, decisão que está sendo percebida pela população como ação contra a Lava-Jato. Utilizar-se do velho formalismo jurídico para anular a condenação de um corrupto por suposta falha técnica, que não está prevista em nenhuma legislação existente, é uma maneira de postergar a punição.

A modulação que será proposta pelo ministro Dias Toffoli, presidente do STF, deve definir que o julgamento volta às alegações finais, não havendo, portanto, o perigo de começar da estaca zero, o que vai certamente ser reivindicado pelos advogados de defesa.

Cumpridas as novas formalidades, o resultado do julgamento vai ser igual, não é possível acrescentar provas ou acusações. A questão mais grave é a da prescrição da pena, se houver possibilidade recursal de postergar o final do julgamento por qualquer outra mágica jurídica.

É possível que na decisão final fique definido que o prazo legal da prescrição permanece suspenso enquanto o processo retorna às alegações finais. As semelhanças com o caso das Mãos Limpas na Itália são muitas, mas, por enquanto, a popularidade da Operação Lava-Jato continua grande.

Na Itália, o combate à corrupção teve um apoio popular grande, que decaiu ao longo dos anos devido, principalmente, a diversas denúncias que ajudaram a gerar desconfianças na população, mesmo não tendo sido comprovadas.

A economista Maria Cristina Pinotti, estudiosa da Operação Mãos Limpas, coordenadora do livro “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas”, relata que a reação do sistema político teve seu auge com a eleição de Silvio Berlusconi como primeiro-ministro, em 1994.

Tomou corpo, então, uma campanha de difamação contra as principais figuras da Operação Mãos Limpas, em especial o juiz Di Pietro, e acusações de abuso de poder nas investigações, o mesmo que está acontecendo hoje no Brasil.

O projeto anticrime contra a corrupção que está sendo debatido no Congresso com grandes restrições tem o objetivo de tomar a dianteira diante do que aconteceu na Itália com as Mãos Limpas.

O Conselho de Ministros do governo italiano da época aprovou, por exemplo, um decreto-lei impedindo prisão cautelar para a maioria dos crimes de corrupção, a partir do que grande parte dos presos foi solta.

O decreto ficou conhecido como “salva ladrões”, e causou tanta indignação popular que foi revogado poucos meses depois de editado, mas provocou retrocesso nas investigações.

Em vez de terem aprovado reformas que evitariam a corrupção, na Itália acabou se assistindo a uma reação do sistema, dos próprios investigados, pessoas poderosas e influentes, e foram aprovadas leis para garantir a impunidade. A economista destaca a eficácia do trabalho da força-tarefa.

No início dos anos 90, 20% dos indiciados na Procuradoria de Milão eram absolvidos por falta de provas, enquanto que nos primeiros anos da Operação Mãos Limpas o percentual caiu para 4%, tendo voltado para mais de 20% depois.

Dentre um universo de mais de cinco mil pessoas investigadas, apenas 900 foram presas, e 40% do total foram salvas por prescrições, morosidades processuais ou mudanças nas leis, deixando um forte legado de impunidade.

Para Maria Cristina Pinotti, a Operação Mãos Limpas foi mutilada antes de seu final, e não cumpriu integralmente seu papel de punir os corruptos como esperava a sociedade italiana.

Para ela, os textos dos ex-magistrados Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo, incluídos no livro, ajudam a estabelecer uma comparação com o que se passou na Itália. Lá, a reação oligárquica da corrupção contra a Operação Mãos Limpas teve sucesso.

O ministro Luís Roberto Barroso, que também escreve no livro, listou decisões que a classe política aprovou para preservar a si e aos corruptos: mudou a legislação a fim de proteger os acusados de corrupção, inclusive para impedir a prisão preventiva; reduziu os prazos de prescrição; aliciou uma imprensa pouco independente e procurou demonizar o Judiciário.

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