segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Sergio Lamucci - O Brasil e um mundo de juros baixos

- Valor Econômico

Guerra comercial entre EUA e China poderá levar o mundo a transitar de uma fase de taxas reais de equilíbrio baixas para uma etapa de taxas “ultrabaixas”

O mundo desenvolvido convive com juros baixos desde a crise financeira global de 2007 e 2008, e a tendência é que isso continue por um longo período. Hoje, mais de US$ 17 trilhões em títulos públicos e privados oferecem rendimento negativo, num cenário de elevada incerteza, desaceleração do crescimento mundial e mudanças demográficas e tecnológicas. Esse quadro causa desconforto nos países avançados, levantando dúvidas sobre a eficácia da política monetária para combater a próxima recessão global, uma vez as taxas já estão baixas demais.

Esse ambiente tem obviamente impacto no Brasil, contribuindo para reduzir por aqui o juro neutro (a taxa que permite que a economia cresça sem gerar pressões inflacionárias). Nas contas do economista-chefe do Banco Safra, Carlos Kawall, o juro real neutro (descontada a inflação) caiu de 5,5%, no período de 2008 a 2014, para 2,5% hoje. Um terço desse recuo, segundo Kawall, se deve à queda dos juros no cenário internacional.

Para ele, os outros dois terços decorrem de mudanças na política fiscal - como o teto de gastos e a reforma da Previdência - e também na política parafiscal, com a contenção dos empréstimos dos bancos públicos. Essa combinação de fatores internos e externos permite ao Brasil experimentar um nível de juro neutro ineditamente baixo, com implicações favoráveis sobre a retomada do crescimento, a dinâmica da dívida pública e o mercado de capitais, por exemplo.

No mundo desenvolvido, há apreensão com as taxas no chão ou mesmo negativas. O consultor econômico global da gestora americana de recursos Pimco, Joachim Fels, diz que, se os níveis de juros dos “últimos cinco a dez anos foram desconfortavelmente baixos”, é bom se preparar porque o “pior ainda está por vir”. Para ele, quanto mais durar a guerra comercial entre EUA e China, mais provável que o mundo transite de uma fase de taxas reais de equilíbrio baixas para uma etapa de taxas “ultrabaixas”.

Em relatório, ele aponta os canais pelos quais a crescente incerteza comercial impacta a taxa de equilíbrio. A primeira é pelo efeito sobre o crescimento potencial (o ritmo de expansão da economia que não acelera a inflação), que tende a ser menor num mundo de maiores tarifas e incerteza duradoura em relação ao comércio. Um ambiente menos competitivo prejudica a inovação, enquanto a maior indefinição afeta as decisões de investimento das empresas.

O segundo ponto é que a crescente incerteza sobre o comércio - e, por tabela, em relação às perspectivas econômicas - tende a provocar um aumento da poupança e uma maior demanda por ativos seguros. Como a guerra comercial reduz o crescimento potencial e aumenta o excesso de poupança global, isso diminui ainda mais a taxa real de equilíbrio.

Em outro texto, intitulado “O negativo é o Novo Normal”, Fels diz que não é mais absurdo pensar em títulos do Tesouro americano com rendimento negativo, algo que se tornou comum nos bônus de países da zona do euro e do Japão, lugares onde os BCs usam a política de taxas negativas. Nos EUA, a taxa básica está entre 1,75% e 2% ao ano.

Ao avaliar o que está por trás dos juros abaixo de zero, Fels aponta fatores estruturais, dos quais os dois mais importantes são a demografia e a tecnologia. O aumento de expectativa de vida eleva a poupança, enquanto as novas tecnologias poupam capital e se tornam cada vez mais baratas, reduzindo a demanda por investimento, segundo ele. “A poupança em excesso resultante disso empurra a taxa ‘natural’ de juros cada vez mais para baixo”, diz Fels. Fatores conjunturais também ajudam a derrubar a taxa, como o enfraquecimento da atividade econômica e a própria guerra comercial.

O que foi por muito tempo visto como uma aberração de curto prazo, em que “credores pagam aos devedores” para ficar com o seu dinheiro, se transformou no novo normal em mercados desenvolvidos que não os EUA, afirma Fels. Muitos investidores procuram portos seguros para aplicar os seus recursos, num mundo de grandes incertezas.

Neste mês, o economista-chefe do Banco das Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês, considerado o “banco central dos bancos centrais”), Claudio Borio, lembrou que os US$ 17 trilhões em papéis com juros negativos equivalem a cerca de 20% do PIB global. É um fenômeno que era impensável mesmo durante a crise, segundo ele. “Há algo vagamente perturbador quando o impensável se torna rotina”, disse Borio. Num cenário de juros muito baixos ou negativos, a política monetária vai precisar de uma ajuda caso haja uma piora acentuada da atividade econômica, afirmou o economista do BIS, citando o “uso inteligente” da política fiscal nos países em que há ainda margem de manobra para isso.

Os juros globais, desse modo, devem ficar extremamente baixos por um longo período, o que ajuda a manter baixa a taxa neutra brasileira. Para que o juro se consolide em níveis menores no Brasil, o ideal é seguir com a contenção dos gastos públicos, enfrentando o crescimento das despesas obrigatórias - a medida verdadeiramente necessária para garantir alguma recuperação do investimento público.

O ajuste estrutural das contas públicas é o que abre espaço para o BC continuar a reduzir a Selic, hoje em 5,5% ao ano. Por aqui, ainda há bastante terreno para o BC avançar na política monetária - um cenário bem diferente do que se observa nos países desenvolvidos.

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