quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Bruno Boghossian – Trocando em miúdos

- Folha de S. Paulo

Presidente não consegue dissociar administração pública de suas paixões ideológicas

Em 30 de maio de 2010, Ferreira Gullar fez uma de suas críticas ácidas ao então presidente Lula durante uma entrevista à Folha. "O Lula é um farsante, não merece confiança", disparou. No dia seguinte, o escritor foi anunciado vencedor do Prêmio Camões, entregue pelos governos do Brasil e de Portugal.

O petista assinou o diploma que foi entregue a Gullar meses depois. O poeta recebeu um cheque de € 100 mil e continuou fazendo comentários sobre política. Declarou voto em José Serra e chamou Lula de "uma pessoa desonesta, um demagogo".

Jair Bolsonaro mostra que não consegue dissociar atos de governo de suas paixões ideológicas. Ao fazer mistério sobre a assinatura do certificado do Prêmio Camões concedido a Chico Buarque neste ano, ele submete o governo a suas vontades pessoais mais mesquinhas.

A ala radical do Planalto pressiona Bolsonaro a não incluir seu nome no documento, já que o músico fez campanha para Fernando Haddad e visitou Lula na prisão. Na terça (8), o presidente quis fazer piada: "Até 31 de dezembro de 2026 eu assino".

Chico respondeu nas redes sociais, em tom político. "A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Prêmio Camões."

Em maio, quando Chico foi escolhido, o ministro Osmar Terra ficou furioso e quase demitiu o secretário de Cultura, Henrique Pires. Ele deixou o cargo em agosto, devido a outras interferências em sua área.

A cegueira política do governo neste caso é a mesma que faz com que Bolsonaro se cale diante da morte de João Gilberto, mas homenageie o artista MC Reaça, que apoiou sua campanha. Ele se suicidou em junho. Uma mulher diz que foi espancada por ele momentos antes.

Na cerimônia do Camões de 2016, o premiado Raduan Nassar disse que Michel Temer era "repressor" e havia praticado um golpe. Houve bate-boca entre o público e o ministro Roberto Freire, que pontuou: "Quem dá prêmio a adversário político não é ditadura". Bolsonaro gosta de dar sinais no sentido contrário.

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