sábado, 26 de outubro de 2019

Demétrio Magnoli* - Da revolução à revolta

- Folha de S. Paulo

Os governos nascem das urnas; as revoltas, das ruas

Vladimir Putin atribuiu a revolução ucraniana de 2014 a um complô americano. O governo chinês menciona a “mão negra” da Casa Branca quando fala das manifestações em Hong Kong. Segundo Filipe Martins, o sábio assessor internacional do Planalto, “os recentes movimentos de desestabilização de países sul-americanos” derivam de “uma estratégia definida pela ditadura cubana, por sua proxy venezuelana e pela rede de solidariedade que as sustenta”. Quando o temível Foro de São Paulo estala os dedos, milhares erguem barricadas em Quito e Santiago...

A razão conspiratória é o lar compartilhado por regimes ditatoriais e ideólogos primitivos. A agitação social não se restringe à América do Sul. No Líbano e no Iraque, protestos de massa coincidiram com as mobilizações chilenas. Bem antes do Equador, os “coletes amarelos” conflagraram as cidades francesas, motivados também por aumentos nos combustíveis. Há algo aí, além da coincidência temporal.

São histórias singulares, países diferentes, modelos distintos. Numa ponta, a França social-democrata, com desigualdades moderadas e taxas letárgicas de crescimento econômico. Na outra, o Chile liberal, com rápida expansão econômica e fortes contrastes sociais. Porém, em todos os casos, a centelha da revolta são cortes de subsídios de transportes, elevações de preços da gasolina, tributos sobre produtos ou serviços de consumo geral. No Líbano, a faísca foi uma taxa sobre ligações por WhatsApp.

A primeira década do século, um longo ciclo de expansão mundial, deixou um rastro de gastos públicos insustentáveis. Os ajustes em curso, que refletem a redução do crescimento global e se destinam a reequilibrar as contas públicas, são os alvos das manifestações. Não é pelos 20 centavos: o conflito organiza-se em torno de contratos sociais em mutação. Como repartir a conta da austeridade? A pergunta, cedo ou tarde, chegará ao Brasil, como uma mancha de óleo. Tomem nota, Bolsonaro e Guedes.

Os governos nascem das urnas, sob a lógica da dinâmica político-partidária. As revoltas nascem das ruas, na moldura da desintermediação política generalizada. Os partidos declinam, as redes sociais tomam o lugar que foi deles. Nas margens, minorias radicalizadas explodem coquetéis molotov, enfrentam a polícia, desafiam até mesmo soldados. O quebra-quebra carece de respaldo majoritário. Contudo, que ninguém se iluda: os manifestantes contam com extenso apoio popular.

Não são levantes “espontâneos”, algo inexistente no planeta da política. Nas ruas, destacam-se as bandeiras de sindicatos, entidades estudantis, grupos organizados. Mas a desintermediação tem um preço, expresso pela ausência de lideranças definidas e de agendas nítidas de reivindicações.

As redes sociais operam como máquinas de replicação. O recuo de Emmanuel Macron, que anulou o tributo sobre a gasolina, animou mobilizações em terras distantes. A retirada do equatoriano Lenin Moreno ajudou a acender o pavio em Santiago. No fim, sitiado, o chileno Sebastián Piñera desistiu do discurso da “guerra”, ofereceu desculpas ao povo e improvisou um pacote social. Sem um Pinochet (ou um Xi Jinping), o programa ultraliberal converte-se em utopia: uma ideia fora do tempo.

Derrubar o governo —a meta extrema emergiu em todos os lugares, logo depois da conquista inicial. Os “coletes amarelos” pedem nada menos que a renúncia de Macron. A mesma exigência surgiu no Equador e, nesses dias, ecoa no Chile. A revolução, venerável senhora, o maior dos mitos modernos, levantou-se da cadeira de balanço?

Revolução, só com intermediação política. Não basta clamar pela queda do governo: é preciso definir os contornos de um poder alternativo e o desenho de um novo contrato social. A era das redes sociais, esse outono dos partidos, assinala um retrocesso. A revolução política cede à revolta social.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Um comentário:

  1. STF

    Há algo mais importante do que saber qual será a decisão final do STF sobre a possibilidade de cumprimento antecipado da pena.

    Cabe examinar, preliminarmente, se os ministros da Corte estão proferindo seus votos de acordo com o que pensam, sem nenhum tipo de constrangimento.

    Se a resposta for positiva, teremos algum motivo para celebrar o 15 de novembro. Caso contrário, estarão mais uma vez repostas as condições de perpetuação da nossa falsa República, proclamada sem nunca ter sido.

    Não quero entrar no mérito sobre o que significa o comando de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A mim parece inequívoco, mas não quero ocupar esse espaço com minha posição, de resto já defendida com muita competência por juristas consagrados.


    O ministro Dias Toffoli, que preside o julgamento da prisão em segunda instância - Pedro Ladeira/Folhapress
    Importa sublinhar, entretanto, que todos os 11 ministros do STF já se manifestaram de forma cristalina sobre sua interpretação desse dispositivo, e muito recentemente.

    O pronunciamento de um ministro pode nos desagradar, mas é inegável que todos procuraram fundamentar, com mais ou menos brilho, seu ponto de vista.

    Por outro lado, pressões ilegítimas sobre a Corte têm sido recorrentes. Vindas sempre do mesmo lado.
    As ameaças feitas pelos generais bolsonaristas são explícitas e públicas. Preveem uma convulsão social que eles próprios insuflam como forma de submeter ministros do STF a sua vontade.

    Meios de comunicação de massa comparam a legislação brasileira com a de outros países como se fosse possível a um ministro do STF interpretar a nossa Constituição com base nos princípios constitucionais adotados por outras jurisdições.

    Falsas estatísticas sobre o número de presos eventualmente beneficiados por interpretação garantista são disseminadas para causar pânico, quando sabemos, graças ao Conselho Nacional de Justiça, que a decisão do STF afetaria, no máximo, 0,6% da população carcerária.

    Por si só, o número desnuda a faceta populista do pacote anticrime do governo, que, entre outras medidas, propõe emenda constitucional que dá amparo à prisão após decisão de segunda instância, reconhecendo, implicitamente, que a atual redação não acolhe essa pretensão, ao mesmo tempo em que desconsidera que o dispositivo é cláusula pétrea e, como tal, irreformável.

    Faria bem admitir que os recursos protelatórios cabíveis de uma decisão judicial são matéria infraconstitucional que deve ser aperfeiçoada, dando novos contornos e ritmo ao trânsito em julgado.

    Que o STF resista ao populismo e recupere seu papel contramajoritário, pedra angular da República!


    Fernando Haddad
    Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.

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